terça-feira, 29 de dezembro de 2020

COISA MAIS LINDA É A COISA MAIS LINDA 

 

Por Rivanio Almeida Santos (Rivas)

Nesse recesso de fim de ano estava eu procurando algo no Netflix para passar o tempo e relaxar quando encontrei a série brasileira "Coisa mais linda" (referência a música Garota de Ipanema)

, que, nos leva aos tempos do surgimento da Bossa Nova, no final dos anos 1950 e início dos 60. Inclusive, com personagens q nos fazem lembrar os grandes artistas nacionais da época como Chico e Marieta, Roberto Menescal, Elza Soares e Garrincha, Eliete Cardoso dentre outros. São treze episódios distribuídos em duas temporadas até agora - uma terceira ainda não foi confirmada pelo aplicativo - em que o enredo gira em torno da vida de 04 mulheres incríveis interpretadas por Maria Casadevall (Malu), Pathy Dejesus (Adélia), Fernanda Vasconcellos (Lígia) e Mel Lisboa (Teresa). 


De início a trama mostra as duas primeiras protagonistas que se conhecem em situações super chatas e se mostram completamente diferentes. Malu é branca, paulista, rica, filha de fazendeiro e que quer trabalhar após ter sido abandonada pelo marido, que lhe roubou tudo. Enquanto Adélia é preta, carioca, moradora de um morro, trabalha desde os 08 anos, mãe solteira - se envolveu com o filho dos patrões - e precisa sustentar a filha e da irmã mais nova. 


A terceira protagonista, interpretada por Mel Lisboa - a eterna Anita - é a jornalista feminista Theresa. Ela trabalha em uma revista direcionada ao público feminino e que é escrita quase em sua totalidade por homens - ela é a única mulher da equipe até um determinado momento da trama - e precisa enfrentar o preconceito "das companheiras" de trabalho (sim... eles assinavam as matérias com pseudônimos femininos). Apesar de ser uma mulher à frente de seu tempo, independente, mente aberta - e que, não apenas sonha, tenta fazer as pessoas compreenderem um mundo mais livre - ela sonha formar família com o marido, com quem perdeu um filho ainda pequeno. 


Ligia, a quarta protagonista, é interpretada por Fernanda Vasconcelos. É cantora, sonhadora, casada com um político de uma falida família tradicional da cidade que sonha ser prefeito da Guanabara - atual cidade do Rio de Janeiro - e não só não a apoiava na carreira de cantora da esposa como a impedia e destruía sua autoestima. Como toda vítima de marido machista ela era apaixonada por ele, que impunha suas vontades em jogos de pressões afetivas e psicológicas. Ela, sem perceber que precisava reagir por ser vítima dessa violência, era submetida às suas recorrentes e convenientes sugestões como roupa a vestir, corte de cabelo, parar de cantar e ainda era violentada física e sexualmente. Como não suficiente Lígia se culpava por ser sonhadora e assim dava razões a tudo que passava. 


No desenrolar da série podemos ver histórias de amores, amizades, traições, golpes, misoginia, machismo e feminicídio. Um alerta para o fato de que não conhecemos ninguém a fundo a não ser aquilo que querem que conheçamos. Todo mundo tem sua vida, sua individualidade, conflitos, segredos, histórias, traumas e monstros. 


Na história é inspirador ver estas quatro mulheres que juntas tentam fazer um novo futuro, ainda que enfrentem tantos percalços comuns naqueles anos (e ainda hoje). Quer exemplos? O Pai da Malu querer casá-la novamente para evitar um escândalo na sociedade Paulista. Adélia tinha uma patroa das antigas que a tratava com humilhações através de "privilégios" de dar 1 dia de folga, "permitir" que leve suas roupas para serem lavadas em casa, desconta dia não trabalhado e faz subir de escada nove andares com sacolas de compras para não subir do elevador social. Além de, por ser preta, sempre ser confundida com empregada mesmo quando já estava em melhores condições. 


Se ainda hoje as mulheres, apesar dos avanços, ainda sofrem com preconceitos e desigualdades, imaginem naquele tempo quando, por exemplo, por lei mulher não trabalhava sem a permissão do marido sob alegação de que isso era para lhes proteger. 


Percebe-se no decorrer dos episódios, quem tem o mínimo de sensibilidade e empatia, que apesar de alguns avanços ainda não está tudo bem (e anda longe de ficar) e por isso todas as conquistas das mulheres devem servir como motivação para continuarmos nas lutas por respeito e igualdade de diretos. E quando falo em continuarmos a luta quero dizer que não é preciso ser mulher pra lutar pelos direitos delas, assim como não é preciso ser preto para combater o racismo e nem ser LGBTQIA+ para defender os direitos dos LGBTQIA+. E mais... é preciso mais que isso, é preciso ser antimisoginia, antirracismo e anti-homofobia. Como diz o rapper Emicida no documentário AmarElo, a luta é uma só. 


As histórias retratadas facilmente nos soam familiares por diversos fatores, mas, principalmente, por se passarem em um passado recente (anos 1950 e 1960), tempos vividos por nossos pais e avós e sobre os quais já ouvimos em conversas caseiras. Estas mesmas histórias nos emocionam por vermos que ser mulher nunca foi fácil, mas que muitas enfrentaram e pagaram os altos preços cobrados para serem independentes, donas de si e iniciarem as lutas que tantas outras hoje seguem no fronte. 


A série, com classificação para 16 anos (mais por cenas mais picants que as ousadas intimidades das novelas dos anos 80 - que por uso de álcool e drogas), nos encanta pela linguagem brasileira, fotografia cinematográfica, cenários e caracterizações detalhadas, preparadas com capricho. Além disso, merece uma referência exclusiva à trilha sonora, como já era de se esperar. Somos brindados por regravações - e interpretação dos personagens - de músicas como "É luxo só" ( de João Gilberto), "É preciso dizer adeus" (de Tom Jobim), "Adeus batucada" (de Synval Silva que já fora sucesso de Carmem Miranda). Além disso, somos premiados com músicas como "Para ver você" e "Ver o mar" ambas do, até então desconhecido por mim, João Erbetta. Aliás, é dele ainda "Noite sem luar" que dramaturgicamente é uma composição de Lígia, a sonhadora cantora que tinha decidido refazer sua vida e sua carreira fora do país e - alerta spoille - é assassinada em pleno réveillon pelo violento ex-marido político com quem não quer ter mais nenhuma ligação. A letra traduz o sonho de muitas Lígias da vida real: "Eu vou sair pra ver o sol / No meu caminho eu sou o meu farol / Das nuvens eu vejo o cais / Sinto o vento a me guiar / Eu sei que vou sair da escuridão".

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