quinta-feira, 2 de novembro de 2023

UMA CONQUISTA DA RESISTÊNCIA QUE REFLETE EM REPRESENTATIVIDADE

Ashira Morais


Já escrevi e falei tantas vezes que quando criança eu não via em minha cidade muitas referências LGBTQIA+. Alguns que tinham - recordo de 03 deles, um era estudante e atualmente é professor, um era motorista de caminhão e um amansador de garrote e touros - hoje vejo que eram pessoas muito trabalhadores, contudo, apesar desse perfil comum a eles eram pautas de conversas das más línguas. Crescer ouvindo os comentários maliciosos e debochados a despeito deles me davam a certeza de que no futuro não muito distante eu seria o alvo. Se é que já não era...

Por um lado não havia uma geração, uma comunidade que batesse no peito com orgulho de ser quem era e exigisse o respeito a qual eles também tinham direito de forma a se tornarem referências para nós pré-adolescentes em autodescobertas em busca de inspiração e representatividade. Mas, por outro era possível perceber na minha geração - eu nasci em 1979 - e, por volta dos anos 1990, quando eu já sabia mais de mim passei a identificar características minhas comuns em vários outros. Foi um sentimento de não ser sozinho.

Eu poderia citar aqui pelo menos seis nomes de meninos que naquela época eu já sabia eram iguais a mim. E que, para além do jeito de andar e de falar, tínhamos comum o fato de sempre sermos vítimas de "brincadeiras" que hoje identificamos como atos de intimidações, humilhações e violências psicológica, o famoso bullings pelo simples fatos de sermos crianças afeminadas. Mas, não cita-los em respeito a individualidade de cada um. Contudo quero falar de uma pessoa em especial, que no ápice da pandemia do covid-19 reencontrei pelas redes sociais.

O fato é que naqueles tempos tenebrosos a vida se tornou ainda mais virtual. Assim sendo, eis que certo dia me deparo com uma indicação de amizade do Facebook. Quando vi a foto do perfil achei o rosto muito familiar, aquele olhar eu ja tinha visto, mas não o nome eu nunca tinha visto ou ouvido. Analisei com calma, fui nas amizades em comum... identifiquei que éramos conterrâneos e voltei a foto de perfil. Me concentrei no olhar e vi a criança que eu conhecia muito bem. Estou falando de Ashira Morais.

Quando criança, ainda conhecida pelo nome de primeiro registro, ela já era diferente. Vestida de menino, mas sempre foi muito delicada e educada como a menina que era. Não me refiro aqui só aos seus trejeitos. Também. Mas, falo de postura e coragem diante da vida, mais precisamente do enfrentamento aos ataques dos "coleguinhas". Enquanto alguns reagiam jogando pedra, correndo, chorando (eu), xingando ou mostrando o dedo médio, ela já respondia com palavras, tinha vocabulário, usava argumentos de gente além da sua idade. Ela respondia, dava as costas e saia de cabeça erguida. Certa de que usando palavras ninguém seria superior a ela ali. Todos eles sempre perderiam. Ela já tinha a coragem que eu queria ter e que bem mais tarde adquiri.

O tempo passou, mudei para São Luís, e a última notícia que tinha dela era de que também tinha ido embora de nossa Santa Teresa do Paruá. Nunca mais tinha tido notícias dessa figura tão marcante até o dia em que a rede social do Mark Zuckerberg me sugerir como nova amizade. Na ocasiao quando identifiquei de quem se tratava mandei um convite de amizade ao qual prontamente fora aceito. Fiquei muito contente em ter constatado que Ashila, morando em Imperatriz (MA), tinha se firmado como uma mulher trans e mais ainda quando descobri que sua inteligência e determinação a tinham levado rumo à um futuro pautado na educação. Ela agora era Teóloga, Pedagoga, Mestre em educação com ênfase em Políticas públicas e fazia o curso de Direito. Descobrir isso, não despertava em mim um sentimento necessariamente de surpresa, mas de orgulho, pois eu sabia que se ela focasse no estudo poderia ir longe. E a danada, estava (está) indo, pois soube buscar seu caminho.

Link do debate "O Paradigma Bíblico e as Homossexualidades"

Alguns dias após essa retomada de amizade, agora virtual, me deparei com um vídeo dela, na mesma rede social, fazendo um convite para um debate que tinha como titulo "O Paradigma Bíblico e as Homossexualidades", que seria transmitido pelo canal "Arena Apologética" no YouTube (a quem despertar vontade de assistir ainda  está disponível:). Na ocasião ela debateria com o Professor Dr. Mateus Rangel, apresentado por ela como um excelente pensador Cristão. Mas, porque uma mulher trans aceitaria participar de um debate com esse tema? Ela mesma disse que seria uma oportunidade para "provar que não há nenhuma incongruência bíblica em a pessoa ser gay, homossexual e professar a sua fé na pessoal de Jesus Cristo". Eu assisti ao debate. Seu opositor, de fato um professor muito estudado, mas Ashira deu uma aula de postura, educação, paciência, cordialidade, conhecimento, argumentação, fundamentação... Enfim, parece que durante a live eu assistia seu crescimento e desenvolvimento diante dos meus olhos. E constatei que seu curso de teologia não fora feito por fazer. Ela estudou a fundo. E suas falas ricas de embasamento formam uma aula de conhecimento cristão de quem de fato entendeu os ensinamentos das palavras de amor ao próximo que Cristo trouxe ao mundo. Aliás, seu nome é hebraico e significa rica, abastada.

Ashira Morais no dia do juramento na OAB Maranhão,contando com a presença do Dr Rakley Bueno, da comissão de diversidade da OAB.


De lá pra cá, essa jovem terminou seu curso de Direito e, nesta última semana, saiu o resultado das provas da ordem e qual resultado seria se não a aprovação dessa mulher incrível no exame da OAB? Confesso, que mais uma vez não fui supreendido por sua aprovação, pois sempre tive ciência de sua inteligência e já sabia de competência e qualificação. Novamente o sentimento que tive foi de orgulho, pois cada degrau que um de nós da comunidade LGBTQIA+ some, não é apenas um simples passo dado. É sim uma grande conquista. É a vitória de uma luta diária de toda uma gente que tem diariamente seus direitos negados. É a resposta a todos aqueles que riam, aprontavam, maldavam, praguejavam e nos vitimavam. É mostrar que cada pedra jogada no caminho foi usada para pavimentar este caminho, usado para nos levar aonde nós quisermos ir. A conquista de Ashira não é somente uma vitória pessoal, é também - até pelo fato dela ter se dedicado muito em busca desse sonho, mesmo com sua vida corrida diária - mas, é, principalmente, uma conquista nossa - LGBTQIA+ conterrâneos seus - e de todos aqueles e aquelas que olham para sua história e se veem representados por ela, que olham para sua trajetória e veem que sim, é possível um caminho e um destino diferentes daqueles "profetizados" pelos que nos condenam.


Viva Ashira!