domingo, 4 de fevereiro de 2024

LOUCAS MEMÓRIAS

 Toda cidade tem seus moradores que entram para a história como personalidades ilustres, que ficam na memória das pessoas por anos a fio.  Em Santa Teresa do Paruá, minha terrinha Natal (a 416,1 km de São Luís via BR315 e a 251,7 km via ferry-bout) não é diferente. Tem muita gente querida por ter contribuido significativamente com a construção socioeconômica da cidade, mas há ainda os que contribuíram, mesmo que involuntariamente, com a construção de uma história à parte ligada, digamos, mais ao imaginário popular e que não merecem ser esquecidas.

Vista aérea de Santa Teresa do Paruá 

Muito bom ter nascido e ter podido crescer na minha cidade em um período importante para sua consolidação como uma comunidade unida, com necessidades, sonhos e lutas comuns.  E ao longo do tempo de ter acompanhado seu crescimento e emancipação de fato. Saindo da condição de município de Turiaçu para ser município de Santa Luzia do Paruá e, por fim, virá cidade sede. Pena que com nome de Presidente Médici, um dos piores ditadores da história brasileira. Mas, enfim... voltemos ao foco.

Bom, são muitos os nomes de pessoas que ajudaram a por cada tijolinho de nossa história. Muitos ainda estão vivos acompanhando a história continuar a ser escrita. Alguns já partiram desse mundo e deixaram suas contribuições e exemplos de trabalho, honestidade e amizade. Esses ficam na história documentada em pesquisas escolares, em nomes de prédios públicos, podem virar nomes de ruas, avenidas... e seguirão sendo história passada de geração em geração.

Contudo, em toda e qualquer localidade sempre existem alguns que suas histórias vão sendo passada de boca a boca como sendo personagens de contos e causos. Esses passaram suas vidas às margens, sob os estigmas preconceituosos de loucos, estranhos... mas, alguns era apenas diferentes e excêntricos ou exóticos. Eram assim considerados por terem alguma deficiência mental, intelectual ou física e tão tinham os devidos tratamentos necessários e aos quais temos conhecimento com maior facilidade - ou com menor dificuldade - atualmente. Santa Teresa, apesar de, na época que eu morava por la - década de 1980 e 1990 - ser um lugar relativamente pequeno teve um razoável número de pessoas que tinham características mentais diferenciadas dos "ditos normais" (eu até hoje sigo querendo saber o que é normal...)

Quando eu era pequeno meu avô paterno, Seu João Batista Cantanhede - João Juruca, daí o apelido de meu pai - morava, se não olhei errado no Google Maps, na Rua São Benedito. Vizinho a ele, quase em frente a sua casa, morava um garoto  fogoió com idade semelhante à minha. ARMINDO cresceu andando a cidade e tinha alguns comportamentos característicos recorrentes como balançar os braços em círculos, saltar sorrindo e batendo as palmas das mãos... Ele, volta e meia, soltava uns palavrões cabeludos - kkkkkkkk - para desespero dos adultos. Em compensação sabia de cor e salteado o roteiro de uma missa. Muitas vezes ele ia lá pra casa e ficava na farmácia conversando com a gente, que sempre pedia que "rezasse" a missa. Ele fazia sem reclamar. Eu achava incrível sua capacidade de memorização.

Outro que sempre ia la em casa, normalmente aos fins de tarde, e ficava olhando papai tirando a barba - ele fazia isso sentado em um tamborete na calçada da farmácia - era um rapaz conhecido como TI CACHORRÃO. Sempre com uma Correia na mão, andava a cidade girando sua Correia. Apesar de estar sempre "armado" com sua peça ele era uma pessoa pacífica. Cumprimentando a todos com seu conhecido "Ei, ti!".

Recordo ainda de uma mulher magra,  alta, que tinha um filha - não recordo o nome - e estava quase sempre estava alcoolizada. Seu nome era Maria Joana e tinha o apelido de MERENGUE. Era comum ela andando a cidade já embriagada, cantando, dançando, com uma garrafa em uma das mãos enquanto com a outra arrastava a filha. Não recordo a última vez que a vi e qual seu fim e nem de sua filha.

Tenho também uma breve recordação de uma espécie de "VELHO DO SACO". E, apesar de conseguir visualizá-lo mentalmente, não recordo seu nome. O fato é que ele andava vestido de roupas rasgadas e sujas, com um saco pendurado em um pedaço de pau aos quais ele arregava nos ombros. E, como criança não é cria de gente, os meninos gritavam um apelido a ele, que corria com raiva atrás dos pestinhas.

Não sei hoje, entretanto quem conheceu o centro Comunitário da Comunidade Católica de Santa Teresa conheceu e admirou as pinturas da capela (não recordo qual) e do refeitório (a Santa Ceia do Senhor). Ambas feitas com muita perfeição e afinco por um artista chamado ADOLFO. Recordo ligeiramente dele, um homem negro, tinha uma conversa articulada, fundamentada e bom vocabulário. Contudo era visível que não gozava de boas faculdades mentais. Todos falavam que ele ficou daquele jeito de tanto estudar... isso passou a ser argumentação para alguns preguiçosos para estas atividade - eu mesmo, quando adolescente, argumentei várias vezes. Não adiantava... tinha que estudar, ainda bem.

Eu sempre tive uma relativa boa convivência com todos estas pessoas. Pois, eram todos calmos. Então eu não tinha medo de quase nenhum deles, pois não imprimiam nenhum tipo de agressividade. Contudo... meu Deus!!! Teve uma senhora que me apavorava, a MULHER DO ÍNDIO. Uma senhora baixinha, que morava lá pras bandas do bairro das Três Barracas. Quando estava bem nunca a viamos circulando pela cidade. Ao passo que todas as vezes que tinha crises saía andando apressadamente pela cidade e, como que lei, sempre tinha que passar lá em casa, pois sempre ia a procura do meu pai. Quando ele estava em casa, tudo bem. Mas, quando eu estava sozinho tomando conta da farmácia ficava sempre apreensivo com medo dela aparecer. E quando aconteceia dela despontar na rua e alguém me avisasse, eu baixava as portas da drogaria e corria para fechar porta e janela da casa também. Certa vez ela entrou procurando papai antes que eu chegasse a tempo de fechar.  Na volta entrou no quarto dos meninos, que antecedia a porta do ambulatório, e deu de cara com um desenho gigante do Rambo segurando uma metralhadora. Ela saiu correndo e gritando pedindo para o "soldado" não atirar nela. Eu sempre rir, de nervoso, dessa história. A Mulher do Índio tinha uma fixação pela figura do meu pai,  que sempre lhe atendia bem. Certa vez a mãe dos meus sobrinhos Lucas e Teresa, que é jornalista, foi fazer uma matéria na clínica que acolhia pessoas em crise e a conheceu. Quando conversaram e descobriram o ponto em comum, seu Raimundo Juruca, a interna cismou que a então repórter, Cristiane Moraes, tinha que levá-la dali. Foi sufoco pra equipe de reportagem sair da clínica.

Uma outra pessoa que frequentava muito nossa casa era chamado de MANÉ PRETO. Conheci esse ainda pequeno.  Menino negro e gordinho de nome Antônio que foi criado pelo Seu Sabino, um curandeiro que foi muito amigo do meu pai. Moravam nas primeiras casas do bairro Cabeça da Égua, no sentido de que ia para o outeiro. Toda vez que eles vinham pra as ruas da cidade, encostavam lá em casa. Quando o velho Sabino faleceu, papai ficou responsável, por comprar uma casa para que o Antônio morasse mais próximo a cidade, já que não tinha nenhum outro parente.

Uma pessoa, ou melhor, uma família que não era de lá, porém sempre passava pequenas temporadas na cidade era uma  dona de um pequeno circo. A família era formada pela Mãe, a filha e o Pai, conhecido como MENINO DE OURO. Recordo bem que eles eram negros e tinham os cabelos pintados de dourados. Eles não eram, até que se prove o contrário, pessoas com algum tipo de deficiência intelectual, mas tinham uma vida nômande  muito diferente da vidas de nós que tínhamos residência fixa. Isso despertava curiosidades.

Nesse contexto, de não ser deficiente de cognição, mas de serem pessoas autênticas, marcantes e, por isso, foram do comum tivemos outros amigos. Esse é o caso da dupla VERDIANO e BRABO. Eles eram dois amigos e vizinhos que ganhavam a vida sendo coveiros e fazendo bicos nas casas da cidade como cavando ou lavando poços, capinando ou limpando quintais. Outra prática que os dois tinham em comum era o gosto pela pinga. Não difícil eles passavam pelas ruas após algum trabalho e após tomarem suas merecidas doses de alguma branquinha.

Morando em uma casa quase de fundo com nosso quintal tinha a MARIA GARIMPEIRA. Uma mulher que sempre achei interessante. Trabalhou  garimpos durante uma parte de sua vida e fixou residência em Santa Teresa. Não tinha muitas posses, só que isso não era desculpa para que não andasse sempre arrumada, perfumada, cheia de Colares, pulseiras, anéis, maquiada, cabelos pintados e penteados. Sua vaidade era muito admirável.

Outra mulher muito vaidosa e curiosa era DONA FRANCISCA, esposa do Seu Cabeça Branca, um comerciante que tinha na Praça das Quatro Bocas - acho que depois deles quem morou no endereço foi o Mauro Jacu. Dona Francisca tinha um cachorro chamado Benjamin com o qual passeava pela cidade e tinha muito carinho. Ela tinha como dote artístico a dança. Vez por outra coloca a vitrola na calçada de casa com músicas altas e se punha a dançar diante de uma plateia que se formava curiosa.

Joyce Morais

A outra mulher - esta trans -  marcante foi minha querida amiga JOYCE, a pioneira da cidade. Conheci ela ainda pequena, antes de se assumir esta personalidade, com nome e pronomes femininos. Desde criança andava sempre na ponta do pé, como que estivesse sempre sobre um salto imaginário. Adorava falar, sorrir e dançar!!! Sempre tinha uma performance da Madonna para nos apresentar - com uma certa timidez - na sala lá de casa para mim e minha irmã Rogenia, por quem ele sempre teve um carinho especial. Os anos passaram, ela externou ainda mais sua personalidade feminina e sempre foi muito querida na cidade, apesar dos preconceituosos e das más línguas que sempre existiram e existirão. Infelizmente Joelma sofreu um AVC e depois de complicações para quem tá tinha baixa imunidade veio a falecer já nos anos 2000 e pouco.

Não bastando estas personagens ilustres da cidade, esporadicamente apareciam umas figuras, digamos curiosas. Quando eu já era adolescente apareceu umas duas ou três vezes um casal de cegos muito instigante. Vi na casa da minha vizinha, Maria - esposa do Neuton  Araújo - uma muvuca de gente e, curioso que soooou, fui e conferi o que se tratava. Um casal de cegos com uma filha pequena e toda falante. Isso não era o atrativo e curioso da história... o cara, o marido e pai reconhecia células de dinheiro apenas pelo cheiro. E dá-lhe células diferentes para ele cheirar e dizer o seu valor..... e todos caindo nessa!!! Hoje eu acredito que na verdade ele não era cego total. Tinha uma baixa visão que lhe permitia enxergar a cédula a distância da altura de seu nariz. E nós totalmente admirados com as cenas. Kkkkkkkkk

Por fim recordo do Seu Margarida que, não sei onde morava exatamente, e que sempre vinha visitar seu filho Riba, que faleceu dias atrás, e fora criado pelo Antônio  Carpinteiro e Dona Chica, meus vizinhos, maravilhosos. Seu Margarida tinha um jeito de andar e falar como os caipiras matutos encenados em tantos filmes ou programas de comédias. O que mais era marcante nas suas visitas era seu gosto por cantar. Se ele cantava várias musicas eu não tenho recordação. Todavia ele sempre cantava uma música em específico, e a qual sempre o Seu Santinho - vizinho de frente - se divertia sorrindo e mandando ele cantar novamente. A letra da música dizia:

"Chorei, porque
Fiquei sem meu amor
O gavião malvado
Bateu asa foi com ela,
E me deixou

Quem tiver mulher bonita
Esconda do gavião
Ele tem unha comprida
Deixa os marido na mão
Mas viva quem é solteiro!
Não tem amor nem paixão
Mas vocês que são casado,
Cuidado com o Gavião!

Chorei, porque
Fiquei sem meu amor
O gavião malvado
Bateu asa foi com ela,
E me deixou

O culpado disso tudo é
O marido de agora, a muié
Anda na rua com as canelas de fora!
Gavião tomando cheiro,
Vem descendo sem demora
Pega muié pelo bico,
Bate asa e vai imbora!"

Passados muitos anos, já morando em São Luís, ouço na rádio uma música e reconheço a letra. A música cantada por Seu Margarida não é nada mais nada menos do que a música "Gavião Calçudo", uma composição resultante da parceria de Pixinguinha e Cícero de Almeida (o “Baiano”), lançado em 1929.
Clipe da Música "Gavião Calçudo"

Hoje vejo que a maioria dessas pessoas não tiveram oportunidade de acesso a tratamentos a seus casos relativos à saúde mental.Com o tempo fui compreendendo que estas pessoas taxadas de loucas tinham uma características em comum, todas foram autênticas, únicas, sinceras, verdadeiras e marcantes. Com o tempo passei a entender ainda mais as falas do grande escritor Ariano Suassuna: "Eu gosto muito de história de doido. Não sei se é por identificação. Mas eu gosto muito" e "Os doidos perderam tudo, menos a razão" e uma certa liberdade.

É isso... Mas, fica a curiosidade: quais seriam nossas características mais marcante não fosse nossas terapias ou nossos tarjas pretas de cada dia?