quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

GLÓRIA MARIA E A LIBERDADE DOS SONHOS

 


Rio de Janeiro, fevereiro de 2001 a escola de Samba Grande Rio, que tinha meu querido amigo Joãosinho Trinta como carnavalesco, levaria à Sapucaí o enredo "Gentileza "X" - O profeta do fogo", que contava a história José Datrino. Este era um ex-empresário de Niterói, que enlouqueceu ao saber do incêndio em um circo em sua cidade que vitimou fatalmente mais de 500 pessoas. Ele recebeu o nome pela população de Profeta Gentileza, por ter abandonado seu universo cheio de dinheiro para pintar com gentileza as ruas do Rio através de mensagens de paz e esperança em pilares da Avenida Brasil. Aquele ano a escola encerrou o desfile, já na terça-feira de manhã, com um homem voador, o dublê americano Eric Scott voou sobre a Sapucaí, com um minifoguete acoplado nas costas, o que causou uma emoção sem medidas tamanho fora a surpresa causada com esse acontecimento inesperado.


Naquele ano ainda íamos em três – Enoque e Biné Gomes (ambos destaques da escola) e eu –.  Chegamos para passar o carnaval na capital carioca na quarta-feira magra, dia 21 de fevereiro – a noite e na tarde do dia seguinte fomos ao barracão da escola, ainda no bairro do Santo Cristo, região portuária do Rio.

No barracão pedimos para falarmos com Joãosinho e o querido Danyllo Gayer (este Primeiro Destaque da agremiação e Presidente dos Destaques), que estariam em nosso aguardo àquela manhã.  Fomos anunciados e orientados a aguardá-los na sala do João, pois estaria finalizando uma entrevista. E lá fomos nós... Gente, minha ansiedade estava ON. Com a expectativa de conhecer o gênio do carnaval brasileiro (Enoque já era seu amigo, mas eu ainda não o conhecia). Contudo, a vida me reservava muito mais... Ao entrarmos à sala fiquei impactado com a cena: dois ídolos de minha vida inteira estavam ali, conversando à minha frente. Joãosinho Trinta sendo entrevistado pela gloriosa Glória Maria. Ela se preparando às transmissões dos desfiles tentava desvendar os segredos que João tinha preparado para deixar a Sapucaí e o mundo de queixo caído.

Ele o gênio e ela uma sumidade do jornalismo brasileiro. Além disso, ela, uma mulher preta, à frente de um dos principais programas televisivos do país - o Fantástico -, ainda comandava as transmissões dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. Isso para mim já era o suficiente para admirar a imagem que essa mulher representava, aliás, representa. E eu ainda não tinha a consciência que tenho hoje sobre sua história que é de uma personificação do significado do termo "representatividade".

Ouso comparar - e me deixa - a jornalista e apresentadora com a romancista Maria Firmina do Reis, que foi a primeira escritora abolicionista brasileira. E Gloria foi a profissional que deu à cara  como pioneira em muitas atividades profissionais. Dando um caráter abolicionista, de quebra de correntes, ao povo preto que antes dela não se via em muitos cenários. Ela pode não ter liberado as vagas de fato ao nosso povo, mas ela com toda certeza libertou os nossos sonhos de chegarmos mais longe do que as probabilidades impõem.

Na Globo, tornou-se repórter numa época em que os jornalistas ainda não apareciam no vídeo. A estreia como repórter foi em 1971, na cobertura do desabamento do Elevado Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro. Foi apresentadora do fantástico de 1998 a 2007, viajou  a mais de 100 países, fez a primeira transmissão ao vivo, fez a primeira transmissão em HD, entrevistou a Madonna e Michael Jackson, além de, quando saiu do Fantástico, ainda deu a volta ao mundo fazendo reportagem para o Globo Repórter.

Na vida pessoal de Glória ela também foi  uma inspiração. Após décadas de trabalho sem férias resolveu tirar um período sabático, passou um período em um mosteiro na Ásia e na volta foi à Bahia prestar serviços voluntários, onde encontrou suas filhas de alma as quais não titubeou em adotá-las.

Sabemos que ser mulher é já uma questão que dificulta muito a realização de algum desses sonhos, imagina todas estas realizações e, imagine mais ainda, realizar tudo isso sendo uma mulher preta! Por tudo isso ela sempre fora inspiração não apenas às mulheres, mas a todo o povo preto brasileiro já cansado de ser colocado à margem com oportunidades negadas.

Sua história inspira a nós na busca por oportunidades, aproveitar com garra as que aparecerem e a não baixarmos nossa cabeça diante das dificuldades que a vida nos surpreende. Nesse sentido nos últimos anos enfrentou um câncer no pulmão, que mais tarde entrou em metástase no cérebro e aos quais enfrentou com coragem e dignidade. O Brasil já tinha se impactado com a notícia da volta da doença que a levou a internação para um novo tratamento. Hoje, 02 de fevereiro de 2023, o país para e chora com a notícia da morte de Glória Maria.

Eu fico completamente impactado, não é só uma celebridade que morre ou uma grande ídola que se parte é mais que isso, uma ídola que me olhou nos olhos, me cumprimentou, sorriu pra mim, perguntou se estava tudo bem  - quem é fã de verdade e tem uma oportunidade como a que tive registra na mente e no coração isso pela vida inteira pela importância da representação que aquela pessoa lhe tem.

Glória Maria nos deixa órfãos de seu trabalho, mas nos deixa um cardápio de inspirações que  sempre será motivacional para sermos profissionais capacitados, qualificados e comprometidos. E, transbordando o limite profissional, sua história nos motiva a sermos pessoas disponíveis, sensíveis, solidárias, batalhadoras, bem humoradas, corajosas e autoconfiantes.

Viva Glória Maria!
Que sua história viva e inspire sempre!

5 comentários:

Ediana Galvão disse...

Belíssima homenagem! É assim que guardamos as pessoas em nossos corações e memória.

Anônimo disse...

Que texto incrível e cheio de admiração.

Anônimo disse...

Linda homenagem 🙏😭

Anônimo disse...

Todas homenagens serão poucas para essa lenda do jornalismo, mulher guerreira e dessa mãe de amor incondicional. Parabéns pelo texto Rivas!

Anônimo disse...

Belo e comovente depoimento! Parabéns!