domingo, 5 de janeiro de 2025

FUI PARA CODÓ E ME ACABEI NA SAPUCAÍ

 Autor: Rivanio Almeida Santos

Carro abre-alas da Acadêmicos do Grande Rio, 1999.

      As pessoas não fazem ideia do que é ser uma criança com espírito ligado em tambores preso a uma religião evangélica. E fazem menos ideia ainda do que é ser uma criança gay, sensível aos toques do tambor e ser induzida a ser de uma igreja evangélica tradicional em uma cidade pequena no interior nordestino onde a vida de cada um "é da conta" de qualquer um.

     Desde muito cedo, mesmo quando era obrigado à frequentar a escola dominical, ao passo que ia me descobrindo diferente dos meus colegas - nos gostos musicais, nos assuntos de conversas, de brincadeiras, na forma de falar e nas paixonites infantis - entre elas percebi que batuques de tambores faziam uma espécie de hipnose em meu cérebro e tinha um certo domínio sobre o meu corpo um tanto afeminado. Os irmãos da igreja ao perceber algum sinal de afeminação de um menor eles já transformam a situação em tentativa de abafamento da sexualidade através da condenação à passar a eternidade no fogo do inferno. Com isso a confusão mental auto condenatória está formada.

Capa do LP Olodum ‎– The Best Of Olodum - usado para as oficinas de Dança Afro.

         Apesar de ter enfrentado tudo isso, olhando para trás, eu tive duas sortes às quais serei grato eternamente. Vou começar pela minha segunda sorte que foi ter os três irmãos mais velhos muito ligados a movimentos sociais e que juntos com seus amigos do colégio cresceram sob o lema da escola comunitária que dizia "estude para ajudar seu povo". Isso lhes deu a consciência de que era preciso fazer algo para ocupar o tempo, desenvolver autoconhecimento empoderamento - antes desta palavra existir - e um nível de conhecimento cultural pensando na responsabilidade que eram ser referência às gerações futuras na nossa cidade. Por conta disso, foi criado um grupo de alunos e ex-alunos - o Grupo Chama - que levava de São Luís ao interior seminários, rodas de conversas paletras de temas importantes - já naquela época - para se chegar aos objetivos aos quais se justificava a criação do grupo. Além disso, eram oferecidas oficinas de serigrafia, teatro, Bumba-meu-boi (batida dos pandeirões, bordados e danças), dança afro e percussão. Eu participei de todas as oficinas, mas, com mais afinco e satisfação dos dois últimos que tinham tambores... não pelo fato de eu gostar de bater ou tocar tambor - as tentativas foram desastrosas - , mas é que eles faziam minha alma dançar e eu soltar meu corpo tão novo e tão travado pelas imposições alheias.

          A outra bem-aventurança foi o pai que tive que, durante minha infância, não tinha religião e nem restrições de amizades com quem quer que fosse por conta de religião. Além disso, ele sempre teve um gosto musical muito apurado para alguém que só estudou até o 3⁰ ano primário (hoje ensino fundamental). Fomos criados ouvindo Luiz Gonzaga, Ângela Maria, Cauby, Nelson Gonçalves, Bezerra da Silva, Beth Carvalho, Agepê, Martinho da Vila... e diversos outros grandes nomes do choro e do samba -. Recordo muito bem do LP das Escolas de Samba do Rio de Janeiro de 1987, que eu ouvia todos os carnavais da primeira a última faixa do lado A e do lado B. Foi com meu pai que eu aprendi a gostar de carnaval de Escolas de Samba. Não que ele me levasse para alguma, pois na cidade não tinha. Recordo que após às 22h, quando baixava as portas de ferro da farmácia, tomava seu banho e ia assistir TV para relaxar a mente e "descansar as pestanas", como ele dizia ao negar que tivesse cochichando. Papai se empolgava com os desfiles, com a genialidade de Joãosinho Trinta, os enredos bem fundamentados, os sambas épicos, voz de Jamelão e o carisma de Negrinho da Beija-Flor. Esse ritual aconteceu até completar meus 15 anos, quando mudei para São Luís e papai ficou na nossa Santa Teresa do Paruá.

Capa do LP Sambas de Enredo das Escolas de Samba Grupo 1A (Especial) do Rio de Janeiro, 1987.

        O tempo foi passando, segui estudando para o vestibular e dezembro de 1997, quando aos 18 anos quis o destino que eu me apaixonasse e começasse um relacionamento com um rapaz chamado Enoque Silva que, mesmo sendo maranhense e residindo em São Luís, era carnavalesco, destaque de carnaval no Rio de Janeiro e eu não o conhecia. Enoque começou na Sapucaí pela Unidos da Ponte no enredo que homenageou a Marrom. Naquele ano ele foi o primeiro destaque a entrar na avenida com uma fantasia gigantesca - a segunda que ele criou para esta função naquele carnaval, pois a primeira o carnavalesco, Washington Luiz, gostou tanto que ficou para transformar em fantasia da comissão de frente e de outro setor do desfile.

         Naquele dezembro de 1997 em que nos conhecemos ele já estava prestes à viajar para mais uma temporada no que é o maior espetáculo da terra e iniciar sua ligação com a Acadêmicos do Grande Rio. Logo já seria 1998 e não naquele ano pude acompanhar naquele que poderia ser o nosso primeiro carnaval juntos. Nos conhecemos a menos de 2 meses da viagem. Restou-me, acompanhar tudo pela televisão como sempre fiz. A transmissão não lhe mostrou como eu gostaria, mas aos olhos de um apaixonado foi tudo lindo. No ano seguinte, já com o relacionamento fortalecido - apesar de escondido da família -, ele planejou tudo para eu o acompanhar na temporada de 1999. Eu iria realizar um sonhonque nem cheguei a ousar a sonhar, tão distante eu achava ser. Mas, como conseguir permissão do meu pai e da minha mãe? Eu ainda não tinha passo no vestibular, nao trabalhava ainda? Como dizer que eu iria ao Rio de Janeiro "brincar" carnaval com meu namorado? Só havia - e ainda existe para muitos de nós - uma única saída nessas ocasiões... Eu precisava pôr em prática a primeira lição do "manual de sobrevivência" da comunidade LGBTQIAPN+, a criação de um enredo fictício, mais conhecida como uma desculpa esfarrapada, uma história fantasiosa, enfim, a mentira. Que fique claro, é. nossa comunidade o ato de mentir surge como um ato de sobrevivência, defesa da integridade física, defesa da vida, resistência e tentativa de viver e ser feliz, mesmo que por momentos curtos. Só pra ilustrar: Estes primeiros dias de 2025 repercutiu a história de um rapaz cearense que passou em primeiro lugar em curso de uma Universidade Federal e foi orgulho pra toda família. Depois disso criou coragem e se assumiu gay aos pais, que não aceitaram o expulsaram de casa pelo simples fato de amar alguém do mesmo sexo... muitas vezes é sobre se proteger.

          Bom, voltando a viagem ao Rio de Janeiro... Quando estava me preparando para esta grande aventura e o dia de viajar estava se aproximando eu disse em casa que iria auxiliar um amigo na produção de uma decoração de Carnaval na cidade de Codó, na região dos cocais maranhense, - a escolha da cidade foi após calcular o tempo de voo -. No dia da viagem, que também contava com a companhia de Biné Gomes, outro maranhense destaque de carnaval que iria debutar na Grande Rio àquele ano, fomos ao aeroporto. Pouco tempo após despacharmos as bagagens dou de cara com Roberto Costa - hoje prefeito de Bacabal -, sobrinho do marido de minha irmã mais velha, Rogener. Ele nos cumprimentou e eu respondi com a cara e o corpo desconfiaaaaados como quem estava fazendo algo errado - será se estava? - Quando adentramos a sala de embarque encontro outro conhecido meu e da mesma irmã. Dei de cara com Lobão. Ele foi meu Professor de Biologia no Colégio Santa Teresa de São Luís, onde minha irmã Rogener era Coordenadora Pedagógica. Eu apavorado, mas tentando manter a calma, fui à cafeteria onde ele se encontrava na fila do caixa. Eu, tremendo e de cara pálida, o cumprimentei e pedi que mantivesse aquele encontro em segredo. E a primeira coisa que ele fez ao voltar para juntos da namorada que o acompanhava na viagem foi contar nossa conversa. Eu li os lábios dela perguntando "e ele vai viajar?". Já era tarde para eu desistir.

Enoque Silva e eu, na minha primeira viagem ao 
Rio de Janeiro, 1997.

      Em poucas horas estava eu desembarcando no Galeão após o Boing 737-300 da TransBrasil ter me levado por Belém, Manaus e Brasília. Só faltou o Tom Jobim tocando piano e cantando uma bossa nova para minha chegada no aeroporto que leva seu nome. Mas, na falta dele eu o imaginei cantando "Corcovado" - "Um cantinho e um violão. Este amor, uma canção. Para fazer feliz a quem se ama..." - Eu estava feliz!!! Apesar de tenso, eu estava muuuuito feliz! Eu estava na Cidade Maravilhosa!

     No dia seguinte antes do almoco já estaríamos entre os barracões na região do porto (não existia a cidade do samba ainda) na companhia de Max Lopes e Danyllo Gayer, então Carnavalesco e Diretor de Destaques da Grande Rio, respectivamente. Eu estava sentido pela primeira vez - e sinto nesse instante que escrevo este texto - o cheio de barracão que é uma mistura fumaça de solda e cola de sapateiro que me remete a grande produção cultural, isso me gera uma satisfação gigantesca. 

       Todos os dias eu ligava para casa do telefone público do Hotel Vitória, no Catete, onde estávamos hospedados. Também todos os dias eu contava uma mentira ou apenas dizia que estava bem para não me pegarem na mentira e dizia que a fila do orelhão estava grande para desligar rápido.

Alegoria Maracatu, a parte da frente a gigante saia de Zezé Motta como Rainha do Maracatu. Grande Rio, 1999.

Biné Gomes, como Rei do Maracatu  Destaque da Alegoria Maracatu. Grande Rio, 1999.

          No dia do desfile a ansiedade me consumia. Minha boca secava... eu não conseguia beber nada... eu tinha vontade de fazer xixi... eu não tinha o que urinar. Sabe aquela borboleta no estômago? Eu tinha um borboletário inteiro. Somente quando cheguei à concentração fui realizando a dimensão real que era todo aquele universo. O que vemos na TV é ínfimo, nunca é compatível com o que vimos e, principalmente, com o sentimos lá, ao vivo. Indescritível o que acontece com nosso coração quando a bateria começa a esquentar. Só estando lá!!! Eu tive lá e nunca mais deixei de estar. Eu olhava em volta e o que via eram as alegorias cercadas por milhares de pessoas sorrindo. Naquele mundaréu de gente feliz eu só conhecia Enoque e Biné e parecia ser amigo de todo mundo. Como, além de namorado, minha função no desfile era de Apoio de Destaque, ajudei Enoque a subir na alegoria que representava um sertão nordestino com terra seca e uma grande caveira bovina no centro. Ajudei ele a se montar e assisti a chegada das composições do carro que contava ali com as presenças, entre eles, de alguns famosos como dos atores Raul Gazolla, Beto Simas e da atriz Mônica Carvalho. Fantasia montada, Enoque pronto no alto do carro alegórico eu desci do carro e enfrentei aquele meio mundo de gente desconhecida. Atônito. Lunático. Desacreditado ainda no que estava vendo, vivendo e sentindo. Literalmente ficava me beliscando no braço e na coxa para me certificar que era real. Decidi ir até a alegoria onde estava Biné - acho que a 7ª alegoria, pois naquela época as agremiações desfilavam com cerca de 8, 9, 10 alegorias. Meu transe foi profundo quando mais à frente eu me deparo com ela... a figura preta mais linda, o sorriso mais sincero e a energia mais contagiante que possa existir no Brasil. Gente... Eu estava diante de Zezé Motta! Ela vestida de Rainha do Maracatu dando entrevista à Globo News. Sai de mim completamente. Foi como se meu espírito saísse do meu corpo e ficasse sobrevoando em volta dela ali... fiquei abobalhado vendo a eterna Xica da Silva e Dona Fátima - mãe do Jefferson que namorou Sandrinho na novela A Próxima Vítima, um marco na TV à comunidade gay -. Ela era ainda mais inteligente, linda, elegante e simpática pessoalmente. Quando desligaram as câmeras ela olhou para mim ali hipnotizado e me cumprimentou com um sorriso, piscou os dois olhos adornados com gigantescos cílios postiços e fez um aceno com a cabeça. Foi quando eu despertei e lembrei que estava viajando escondido e me encontrava ao lado de uma equipe de jornalismo durante uma cobertura ao vivo em uma emissora do maior grupo de comunicação do país. A partir daí fui tendo o cuidado de me esconder das câmeras, como se eles fossem me denunciar. Coisas que o medo de ser pego na mentira causa.

Enoque Silva (vide seta), no topo do carro abre-alas. Acadêmicos do Grande Rio, 1999.

         Naquela viagem, em especial naquele desfile, senti vibrações nunca vivenciadas ou sentidas antes. Após toda essa experiência, cheguei à conclusão que o povo brasileiro criou o samba e o seu Carnaval diferenciado do resto do mundo para esquecer, mesmo que por algum dias, todo e qualquer problema, ainda que por vezes o enredo seja denunciando um ou outro - ou todo e qualquer - problema que nos maltrata ainda nos dias de hoje.

Desfile da Acadêmicos do Grande Rio, 1999.

      Passados quase 15 dias vivendo o Rio de Janeiro retornei para casa cheio de novidades e assuntos, no entanto não podia falar ou comentar nada. Sempre que ouvia a palavra "Codó" eu escapulia do ambiente. Assim foi até o primeiro fim de semana após minha chegada, quando minha irmã Rogener com o marido - o tio do Roberto que me flagrou no aeroporto - foi nos fazer uma visita na casa onde eu morava com os demais irmãos solteiros. Durante o tradicional cafezinho oferecido a meu cunhado ele lança a flecha:

    - E então Rivanio, como é Codó?...

Senti como se ele já soubesse de tudo, o que nunca confirmei. O meu sistema respiratório deu uma pausa de segundos. Quando voltei joguei a respostas sem nem pensar:

       - Ora, Costa... como toda cidade do interior do Estado. Uma rua que entra, uma rua que sai e uma igreja entre as duas ruas. Respondi tentando controlar o tremor da voz e a suadeira das mãos enquanto me levantava e saía da sala antes que vissem na minha cara que eu não sabia nem que estrada leva de São Luís à capital da macumba e terra de Bita do Barão. 

        Só sei que retornei vidrado nas inovações de cada enredos. Tudo feito através de processos de criação diferentes. Minha percepção naquela época era que escolas - ano após ano - seguiam entendendo seu papel social e acolhendo ainda mais a participação das minorias e valorizando o protagonismo em busca de igualdade racial, os direitos LGBTQIAPN+, além das homenagens às figuras e personalidades importantes que foram marginalizadas ou esquecidas pela história. Hoje sinto que este lugar é somente para construção da base e dos alicerces das plataformas que servem para dar ainda mais destaque a brancos, héteros e/ ou famosos que lhe traram mais visibilidade midiática.

         Após esses momentos iniciais de vivências, experiências e cumplicidades meu relacionamento com Enoque encontrou mais afinidades, ficamos ainda mais cúmplices, criamos mais confiança e eu me senti mais forte para aos poucos me reconhecer, reafirmar minha minhas preferências, me assumir e impor o respeito necessário. A partir do carnaval do ano 2000 não precisei mais mentir. Não precisei mais me esconder ou tentar disfarçar ser o que nunca fui. 

Trecho desfile Acadêmicos do Grande Rio, 2024.

  Em dezembro de 2024 completamos 27 anos de relacionamento, temos uma filha de 28 anos formada, moramos com sua mãe. Vivemos todos com amor e respeito. E no carnaval de 2025 estaremos na Sapucaí no nosso 26⁰ carnaval juntos. Desta vez estaremos em comemoração ao 31º carnaval de Enoque no Rio de Janeiro. E seguiremos, pois o carnaval é uma das paixões que seguem alimentando nossa união.


Imagens com alguns amigos conquistados nos meus 26 carnavais cariocas:



















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