Estamos em junho de 2025 e começou o São João. Para a maioria dos nordestinos, inclusive dos maranhenses, estamos na melhor época do ano. Concordo em gênero, número e grau! Arraiais grandes, decorações planejadas, grandes esculturas, palcos exclusivos para apresentações de brincadeiras, palcos separados para shows, luzes cenográficas especiais, barracas grandes com assinatura de grandes restaurantes, espaços para pequenos empreendedores, sempre lá nos fundos um espaço para dançar forró pé de serra, parquinho infantis de brinquedos infláveis, cenários para fotos... Caracas, dá frio na barriga e fico arrepiado de pensar na sensação que é chegar em um arraial. Tudo lindo!!! Tudo muito lindo, organizado como cenários para gravações de programas especiais da Globo. Como dizem... Hoje tudo é Instagramável!
O mundo mudou, cresceu e nossas vidas seguiu o rumo que agora acompanha o ritmo da tecnologia que avançou, cresceu, democratizou e segue "influencer-ando" a vida de todos. Mudou até mesmo quem tem no DNA a cultura junina, das promessas, do pagamento de promessas, das brincadeiras populares, das produções artesanais e da satisfação pessoal de ter no currículo vital (da vida) e na biografia afetiva a honra de ter ajudado de fato nas produções das genuínas festas juninas que deram origens aos espetáculos que vemos hoje.
"Ê boi, êi boi
Ê boi do Ceará } bis
Muié segura o menino
Que eu agora vou dançá
Que eu agora vou dançá } bis
Que eu agora vou dançá"
BOI BUMBÁ
(Gonzagão)
Em um domingo como esse de junho a saudade de casa aumenta. E quando falo de casa me refiro ao casa dos meus amados pais, Terezinha e Raimundo Juruca, lá em Santa Teresa do Paruá de onde vim embora em 1995. Mas, até lá eu vivi de fato na prática a construção do São João Nordestino. Lá em casa papai já começava os domingos pondo suas fitas cassete "democráticas" - alguns cismam em chamar nossa única opção de acesso musical no interiores nordestinos dos idos dos anos 1990 de Fitas Piratas... kkkkkkkk deixe ele com suas formas de amenizar sua culpa na manutenção do crime de pirataria kkkkk -. Papai também punha seus LPs - originais, tá?! - e dá-lhe nosso Gonzagão no 3 em 1 da sala nas alturas (eu aumentava o volume sempre). No LP tinha no Lado A as musicas: 1. Sangue de Nordestino, 2. Seu Januário (O Maior Tocado) / São João na Roça / Olha Pro Céu (pot‑pourri), 3. Baião / Algodão / No Ceará Não Tem Disso Não, 4. O Cheiro da Carolina / Cintura Fina / O Xote das Meninas e 5. Acauã. Já no Lado B eram premiados com audições de: 1. Corrida de Mourão (Canção de Vaquejada), 2. Súplica Cearense, 3. Cigarro de Paia / Boiadeiro, 4. Vaca Estrela e Boi Fubá e 5. Feira de Gado. Nesse momento estou ouvindo pelo Spotify - antes que deduzem que de forma pirata... eu fiz assinatura, tá?!).
Em nosso repertório familiar dominical Gonzagão era uma das alternativas que aumentava a intensidade em junho. Já no Colégio tudo começava mais ou menos em abril quando davam início as formações das principais brincadeiras - quadrilhas para as turmas do ginásio e é demais brincadeiras às demais turmas. Os ensaios normalmente eram nas salas do Centro Comunitário e, às vezes, no pátio do próprio Colégio Santa Teresa (aliás, no que terá dado a história...? Humhum... deixa pra lá. Isso não é hora de fugir ao tema).
"No lume da fogueira, numa noite de forró
Pé e chão, chão e pó
Se amam como estrelas no azul no arrebol
Paixão acesa como a luz do sol"
NO LUME DA FOGUEIRA
(Chiclete com Banana)
Todas as turmas do colégio eram envolvidas de alguma forma. Até pelo fato de as aulas de Educação Artística serem direcionadas para ensinar-nos a produção de balões juninos (sem fogo), bandeirinhas, correntes, bonecas de pano, bonecas e bonecos de abanos de palha, bois de cofo, aros de fitas... tudo feito de jornais, páginas de revistas, plásticos do fumo coringa e até papel de seda. Os resultados eram sacos e sacos de artenatos feitos para obtenção de notas e que seriam usados efetivamente para decorações do arraial quando este ficasse pronto.
Para a montagem do arraial em si, o colégio já tinha prontos umas grades de contenção em madeiras e ripas. Tudo pintadinho com cal branco. Com tantas grades a formação da arena de apresentações ficava em forma de um polígono - não sei precisar qual tipo, por não recordar a quantidade de faces da arena. A partir da quarta ou quinta série as turmas podiam ter barracas mas, a construção delas era de responsabilidade de cada turma. E mais uma vez todos eram envolvidos novamente em mais um trabalho grupal coordenado por algum professor. Era mais que um trabalho escolar. Era uma oportunidade de sair da rotina de estudo da sala de aula. Era aprender a ter responsabilidade de adulto na prática. Era bom.... mais que isso... era divertido e gostoso viver aquilo. No dia e na hora marcados nos reuníamos nos bancos de madeira sob as amendoeiras da frente do colégio para nossa grande aventura de subir o morro por trás das casas do Alto do Congresso. Para isso pagávamos a Rua do Congresso, quase até o fim e subíamos a rua da casa do Irmao Bernardo (Véi da Carroça) até chegarmos às veredas que davam acesso ao morro onde ficavam os pés de coco babaçu de onde extrairíamos os olhos de palha usados para cobrirmos as barracas já estruturadas com estacas levadas de nossos quintais. Bom, com os olhos de palhas suficientes para finalizar as barracas, fazíamos o caminho de volta. Cada um puxava pelo menos três ou quatro olhos de palha. Seguíamos fofocando, cantando, brincando, gritando, sorrindo... felizes! Na chegada ao local da montagem do arraial começávamos estalar as palhas, abrindo-as e deixando no ponto de depois amarrarmo-as nas estacas tapando paredes e teto. Para depois tudo pronto então decorarmos com nossas próprias produções artesanais. Isso tudo demorava dois ou três dias de diversão.
"Tomei Caldo de Mocotó aí, ó.
Fiquei forte
Tomei Caldo de Mocotó aí, ó.
"No lume da fogueira, numa noite de forró
Pé e chão, chão e pó
Se amam como estrelas no azul no arrebol
Paixão acesa como a luz do sol"
NO LUME DA FOGUEIRA
(Chiclete com Banana)
Tudo pronto... era hora da organização da funciolidade prática das barracas durante as noite de festa. Quem podia produzir alimentos para vendas, produzia com ajuda da família e quem não podia ajudava na venda e uma escala era feita. Eu geralmente levava bolo de milho (minha irmã Rogenia sempre fez os melhores desse mundo) e por vezes levei espetinho de carne para serem assados na hora (a carne meu pai comprava no mercado, minha mãe temperava e eu fazia os palitos dos espetos com pedaços das cercas do quintal... eu quebrava os talos possíveis e afinava e fazia as pontas de cada um deles com faca. Tinha sempre quem fazia sucos, batidas e caipinhas e ainda juntávamos dinheiro para compra de bebidas para serem revendidas em um cardápio que tinha mingau de milho, canjica, pamonha, farofa, pipoca, salgados e salgadinhos. Éramos crianças com sonhos de sermos gente grande na execução das demandas. Tudo era uma grande e divertida brincadeira séria que serviria para juntar grana para aquisição de insumos que dariam produções em nossas hortas e para investirmos na nossa festa de formatura da oitava série. Como incentivo as barracas das séries mais avançadas ficavam na entrada do arraial.
Engana-se quem nossas barracas não eram limitadas a comidas e bebidas, não!!! Além disso, tínhamos possibilidade de jogos como a pescaria - peixinhos de papelão numerados presos em linhas de crochê, enfiados em uma caixa com palha de casca de arroz e que ao serem puxados revelavam um número contido em um tabuleiro com o prêmio do cliente pagante -, a barba do velho - painel com um preto velho pintado e que na barba tinha vários fios de nylon onde o pagante escolhia um para puxar e que levantava uma plaquinha de cima revelando o número do seu prêmio - e o tabuleiro da Nega Fulô - um painel com um desenho de uma mulher negra com seus grossos lábios abertos onde se jogava uma bola. Quem acertasse receberia o prêmio. Hoje revisitando esse momento vejo e entendo como sendo esta uma brincadeira racista, embora a intenção não fosse propriamente ofender ou machucar alguém de alguma forma. Não tínhamos àquela ocasião o conhecimento de que expor características de uma povo de uma forma pejorativa é um abuso. Hoje com tantas informações e debates sobre preconceitos individuais direcionados e preconceitos estruturais não cabe mais este tipo de brincadeiras.
"Não posso respirar, não posso mais nadar
a terra está morrendo não dá mais pra plantar
se plantar não nasce, se nascer não dá
até pinga da boa é difícil de encontrar".
XOTE ECOLÓGICO
(Gonzagão)
E as apresentações? A discotecagem, as locuções do arraial e até os gritos das quadrilhas principais da escola eram comandados pelo Irmão Reinaldo, Professor Coimbra ou pelo, hoje Irmão, Curru. Dentre a trilha sonora tínhamos músicas do LP "Luiz Gonzaga - Quadrilhas e Marchinhas Juninas", todas instrumentais e também tínhamos o privilégio de ouvirmos Elba Ramalho, Dominguinhos, Trio Nordestino, Genival Lacerda, Fagner e até Chiclete com Banana cantando quadrilha. E nem só de quadrilha se faziam a programação de apresentações dos nossos arraiais... além disso, tínhamos pau de fitas, concursos de Rainha Caipira (dentre as que concorreram eu lembro da Élia do Amâncio, Leda do Seu Daíca, Elma e Leninha do Rosa do Edmilson, da Lila do Domingos Araújo, da minha irmã Rogenia e acho que a Nara do João José), concursos de danças, apresentações de danças sem concorrer - inclusive durante vários anos teve uma coreografia da música "Negritude" do Padre Zezinho (Negritude é luz de Deus / Negritude é imensidão / Negritude é uma promessa de amanhã / Branco e negro / E amarelo e vermelho / É o mesmo jeito / De o Senhor mostrar a sua luz) e uma vez me apresentei em uma coreografia para a música "Feira de Acari", um funk que foi hit da novela Barriga de Aluguel. Tudo era mágico demais!!
"Quando eu me lembro
Da minha bela mocidade
Eu tinha tudo a vontade
Brincando no boi de Axixá"
BELA MOCIDADE
Bumba Meu Boi de Axixá
Não posso deixar de citar que ainda tivemos apresentações do Boi Estrela do Amor - Ednaldo Costa nosso amigo Mirim - e do Grupo de Dança Afro, criados pelo Grupo Chama, Grupo de alunos e ex-alunos do Colégio Santa Teresa de Santa Teresa do Paruá (ainda vou escrever sobre a história e a importância desse grupo). Para criação dessas duas brincadeiras tivemos aula com instrutores do Boizinho Barrica (Tote e Gersinho) e do CCN-Centro de Cultura Negra (não recorso os nomes dos instrutores). Como eu só tinha participado da apresentação de "Feira de Acari" em arraiais... por questões religiosas (eu era da Assembleia de Deus, com o tempo Graças da Deus me desviei) eu nunca briquei em uma quadrilha, como sempre sonhei. Então eu tive nessas duas experiências - boi e afro - momentos mágicos de encontro com batidas de tambores que sempre mexeram comigo... Uma sensação de se achar com os sons do tambor onça, pandeirões, afoxé e do agogô... não como percussionista, mas na dança. Além do arraial do colégio, recordo que ainda tivemos apresentação no povoado Buritirana. Foi minha quase uma turnê!
Toda essa experiência vivida até meus 15 anos foram suficientes para formar minha paixão pelo que há de mais genuíno na alma nordestina. Mas, somente quando cheguei à São Luís, 1995, pude ter oportunidade de conhecer outras representações culturais maranhenses propriamente ditas como Cacuriá, Coco, Lelê, Tambor de Crioulas e todos os sotaques de bumba-meu-boi... e onde eu descobri que ancestralidade é a raiz que fez brotar a árvore que nos sustentou até que pudéssemos dar frutos.
"Vem, morena, pros meus braços
Vem, morena, vem dançar
Quero ver tu requebrando
Quero ver tu requebrar
Quero ver tu remexendo
Resfulego da sanfona
Inté que o sol raiar
Quero ver tu remexendo
Resfulego da sanfona
inté que o sol raiar"
VEM MORENA
Luiz Gonzaga
Nestes 30 anos acompanhando os arraiais e boa parte das festividades culturais de São Luís vi muita evolução nos formatos, estruturas, nas quantidades de componentes, estudos, pesquisas acadêmicas, divulgações, aumento de públicos, emprego de tecnologias, shows pirotécnicos e até o uso das redes sociais como forma de chegar e alcançar a novos espectadores.
Quando paro para olhar tudo que vivenciamos até aqui com todas as inovações que foram incorporadas às brincadeiras folclóricas e aos festejos juninos chego a conclusão que dependendo da forma da introdução e de uso destas alterações até valeu à pena. Embora ainda fique até receoso pelo medo de perderem a mão e acredite que respeitando a moderação necessária até são válidas desde que não se perca a essência e o propósito de suas criações pelos ancestrais de cada segmento cultural e de cada brincadeira. Não se pode deixar de lado a ingenuidade, a doçura do período e nem se pode abrir mão da possibilidade de criação e da realização do trabalho coletivo... sem esses ingredientes jamais as gerações poderão sentir a verdadeira essência junina que faz nossos corações ficarem quentinhos para baterem no compasso das zabumbas e dos pandeirões, que são aquecidos e afinados pelo calor das fogueiras feitas em pagamento de promessas a Santo Antônio, São João, São Pedro e São Marçal.