domingo, 8 de junho de 2025

FESTA JUNINA FEITA COM O SUOR DE NOSSA FELICIDADE

"Ontem eu sonhei que estava em Moscou. 
Dançando pagode russo na boate Cossacou
Ontem eu sonhei que estava em Moscou
Dançando pagode russo na boate Cossacou".
PAGODE RUSSO
(Gonzagão)

Arraial do IPEM, São Luís
Foto: Rivanio Almeida Santos 

Estamos em junho de 2025 e começou o São João. Para a maioria dos nordestinos, inclusive dos maranhenses, estamos na melhor época do ano. Concordo em gênero, número e grau! Arraiais grandes, decorações planejadas, grandes esculturas, palcos exclusivos para apresentações de brincadeiras, palcos separados para shows, luzes cenográficas especiais, barracas grandes com assinatura de grandes restaurantes, espaços para pequenos empreendedores, sempre lá nos fundos um espaço para dançar forró pé de serra, parquinho infantis de brinquedos infláveis, cenários para fotos... Caracas, dá frio na barriga e fico arrepiado de pensar na sensação que é chegar em um arraial. Tudo lindo!!! Tudo muito lindo, organizado como cenários para gravações de programas especiais da Globo. Como dizem... Hoje tudo é Instagramável! 


O mundo mudou, cresceu e nossas vidas seguiu o rumo que agora acompanha o ritmo da tecnologia que avançou, cresceu, democratizou e segue "influencer-ando" a vida de todos. Mudou até mesmo quem tem no DNA a cultura junina, das promessas, do pagamento de promessas, das brincadeiras populares, das produções artesanais e da satisfação pessoal de ter no currículo vital (da vida) e na biografia afetiva a honra de ter ajudado de fato nas produções das genuínas festas juninas que deram origens aos espetáculos que vemos hoje.


"Ê boi, êi boi

Ê boi do Ceará } bis

Muié segura o menino

Que eu agora vou dançá

Que eu agora vou dançá } bis

Que eu agora vou dançá"

BOI BUMBÁ

(Gonzagão)


Em um domingo como esse de junho a saudade de casa aumenta. E quando falo de casa me refiro ao casa dos meus amados pais, Terezinha e Raimundo Juruca, lá em Santa Teresa do Paruá de onde vim embora em 1995. Mas, até lá eu vivi de fato na prática a construção do São João Nordestino. Lá em casa papai já começava os domingos pondo suas fitas cassete "democráticas" - alguns cismam em chamar nossa única opção de acesso musical no interiores nordestinos dos idos dos anos 1990 de Fitas Piratas... kkkkkkkk deixe ele com suas formas de amenizar sua culpa na manutenção do crime de pirataria kkkkk -. Papai também punha seus LPs - originais, tá?! - e dá-lhe nosso Gonzagão no 3 em 1 da sala nas alturas (eu aumentava o volume sempre). No LP tinha no Lado A as musicas: 1. Sangue de Nordestino, 2. Seu Januário (O Maior Tocado) / São João na Roça / Olha Pro Céu (pot‑pourri), 3. Baião / Algodão / No Ceará Não Tem Disso Não, 4. O Cheiro da Carolina / Cintura Fina / O Xote das Meninas e 5. Acauã. Já no Lado B eram premiados com audições de: 1. Corrida de Mourão (Canção de Vaquejada), 2. Súplica Cearense, 3. Cigarro de Paia / Boiadeiro, 4. Vaca Estrela e Boi Fubá e 5. Feira de Gado. Nesse momento estou ouvindo pelo Spotify - antes que deduzem que de forma pirata... eu fiz assinatura, tá?!).

Capa do LP Luiz Gonzaga e Fagner. Presente de Rogener Almeida Santos a sua família.
Foto: Rivanio Almeida Santos 

Em nosso repertório familiar dominical Gonzagão era uma das alternativas que aumentava a intensidade em junho. Já no Colégio tudo começava mais ou menos em abril quando davam início as formações das principais brincadeiras - quadrilhas para as turmas do ginásio e é demais brincadeiras às demais turmas. Os ensaios normalmente eram nas salas do Centro Comunitário e, às vezes, no pátio do próprio Colégio Santa Teresa (aliás, no que terá dado a história...? Humhum... deixa pra lá. Isso não é hora de fugir ao tema). 


"No lume da fogueira, numa noite de forró

Pé e chão, chão e pó

Se amam como estrelas no azul no arrebol

Paixão acesa como a luz do sol"

NO LUME DA FOGUEIRA

(Chiclete com Banana)


Todas as turmas do colégio eram envolvidas de alguma forma. Até pelo fato de as aulas de Educação Artística serem direcionadas para ensinar-nos a produção de balões juninos (sem fogo), bandeirinhas, correntes, bonecas de pano, bonecas e bonecos de abanos de palha, bois de cofo, aros de fitas... tudo feito de jornais, páginas de revistas, plásticos do fumo coringa e até papel de seda. Os resultados eram sacos e sacos de artenatos feitos para obtenção de notas e que seriam usados efetivamente para decorações do arraial quando este ficasse pronto.


Para a montagem do arraial em si, o colégio já tinha prontos umas grades de contenção em madeiras e ripas. Tudo pintadinho com cal branco. Com tantas grades a formação da arena de apresentações ficava em forma de um polígono - não sei precisar qual tipo, por não recordar a quantidade de faces da arena. A partir da quarta ou quinta série as turmas podiam ter barracas mas, a construção delas era de responsabilidade de cada turma. E mais uma vez todos eram envolvidos novamente em mais um trabalho grupal coordenado por algum professor. Era mais que um trabalho escolar. Era uma oportunidade de sair da rotina de estudo da sala de aula. Era aprender a ter responsabilidade de adulto na prática. Era bom.... mais que isso... era divertido e gostoso viver aquilo. No dia e na hora marcados nos reuníamos nos bancos de madeira sob as amendoeiras da frente do colégio para nossa grande aventura de subir o morro por trás das casas do Alto do Congresso. Para isso pagávamos a Rua do Congresso, quase até o fim e subíamos a rua da casa do Irmao Bernardo (Véi da Carroça) até chegarmos às veredas que davam acesso ao morro onde ficavam os pés de coco babaçu de onde extrairíamos os olhos de palha usados para cobrirmos as barracas já estruturadas com estacas levadas de nossos quintais. Bom, com os olhos de palhas suficientes para finalizar as barracas, fazíamos o caminho de volta. Cada um puxava pelo menos três ou quatro olhos de palha. Seguíamos fofocando, cantando, brincando, gritando, sorrindo... felizes! Na chegada ao local da montagem do arraial começávamos estalar as palhas, abrindo-as e deixando no ponto de depois amarrarmo-as nas estacas tapando paredes e teto. Para depois tudo pronto então decorarmos com nossas próprias produções artesanais. Isso tudo demorava dois ou três dias de diversão.


"Tomei Caldo de Mocotó aí, ó. 

Fiquei forte

Tomei Caldo de Mocotó aí, ó. 

"No lume da fogueira, numa noite de forró

Pé e chão, chão e pó

Se amam como estrelas no azul no arrebol

Paixão acesa como a luz do sol"

NO LUME DA FOGUEIRA 

(Chiclete com Banana)


Tudo pronto... era hora da organização da funciolidade prática das barracas durante as noite de festa. Quem podia produzir alimentos para vendas, produzia com ajuda da família e quem não podia ajudava na venda e uma escala era feita. Eu geralmente levava bolo de milho (minha irmã Rogenia sempre fez os melhores desse mundo) e por vezes levei espetinho de carne para serem assados na hora (a carne meu pai comprava no mercado, minha mãe temperava e eu fazia os palitos dos espetos com pedaços das cercas do quintal... eu quebrava os talos possíveis e afinava e fazia as pontas de cada um deles com faca. Tinha sempre quem fazia sucos, batidas e caipinhas e ainda juntávamos dinheiro para compra de bebidas para serem revendidas em um cardápio que tinha mingau de milho, canjica, pamonha, farofa, pipoca, salgados e salgadinhos. Éramos crianças com sonhos de sermos gente grande na execução das demandas. Tudo era uma grande e divertida brincadeira séria que serviria para juntar grana para aquisição de insumos que dariam produções em nossas hortas e para investirmos na nossa festa de formatura da oitava série. Como incentivo as barracas das séries mais avançadas ficavam na entrada do arraial.

Simulação de como eram os arraiais do Colégio Santa Teresa nos anos 1990. Montagem: ChatGPT

Engana-se quem nossas barracas não eram limitadas a comidas e bebidas, não!!! Além disso, tínhamos possibilidade de jogos como a pescaria - peixinhos de papelão numerados presos em linhas de crochê, enfiados em uma caixa com palha de casca de arroz e que ao serem puxados revelavam um número contido em um tabuleiro com o prêmio do cliente pagante -, a barba do velho - painel com um preto velho pintado e que na barba tinha vários fios de nylon onde o pagante escolhia um para puxar e que levantava uma plaquinha de cima revelando o número do seu prêmio - e o tabuleiro da Nega Fulô - um painel com um desenho de uma mulher negra com seus grossos lábios abertos onde se jogava uma bola. Quem acertasse receberia o prêmio. Hoje revisitando esse momento vejo e entendo como sendo esta uma brincadeira racista, embora a intenção não fosse propriamente ofender ou machucar alguém de alguma forma. Não tínhamos àquela ocasião o conhecimento de que expor características de uma povo de uma forma pejorativa é um abuso. Hoje com tantas informações e debates sobre preconceitos individuais direcionados e preconceitos estruturais não cabe mais este tipo de brincadeiras.


"Não posso respirar, não posso mais nadar

a terra está morrendo não dá mais pra plantar

se plantar não nasce, se nascer não dá

até pinga da boa é difícil de encontrar".

XOTE ECOLÓGICO

(Gonzagão)


E as apresentações? A discotecagem, as locuções do arraial e até os gritos das quadrilhas principais da escola eram comandados pelo Irmão Reinaldo, Professor Coimbra ou pelo, hoje Irmão, Curru. Dentre a trilha sonora tínhamos músicas do LP "Luiz Gonzaga - Quadrilhas e Marchinhas Juninas", todas instrumentais e também tínhamos o privilégio de ouvirmos Elba Ramalho, Dominguinhos, Trio Nordestino, Genival Lacerda, Fagner e até Chiclete com Banana cantando quadrilha. E nem só de quadrilha se faziam a programação de apresentações dos nossos arraiais... além disso, tínhamos pau de fitas, concursos de Rainha Caipira (dentre as que concorreram eu lembro da Élia do Amâncio, Leda do Seu Daíca, Elma e Leninha do Rosa do Edmilson, da Lila do Domingos Araújo, da minha irmã Rogenia e acho que a Nara do João José), concursos de danças, apresentações de danças sem concorrer - inclusive durante vários anos teve uma coreografia da música "Negritude" do Padre Zezinho (Negritude é luz de Deus / Negritude é imensidão / Negritude é uma promessa de amanhã / Branco e negro / E amarelo e vermelho / É o mesmo jeito / De o Senhor mostrar a sua luz) e uma vez me apresentei em uma coreografia para a música "Feira de Acari", um funk que foi hit da novela Barriga de Aluguel. Tudo era mágico demais!!


"Quando eu me lembro

Da minha bela mocidade

Eu tinha tudo a vontade

Brincando no boi de Axixá"

BELA MOCIDADE 

Bumba Meu Boi de Axixá


Não posso deixar de citar que ainda tivemos apresentações do Boi Estrela do Amor - Ednaldo Costa nosso amigo Mirim - e do Grupo de Dança Afro, criados pelo Grupo Chama, Grupo de alunos e ex-alunos do Colégio Santa Teresa de Santa Teresa do Paruá (ainda vou escrever sobre a história e a importância desse grupo). Para criação dessas duas brincadeiras tivemos aula com instrutores do Boizinho Barrica (Tote e Gersinho) e do CCN-Centro de Cultura Negra (não recorso os nomes dos instrutores). Como eu só tinha participado da apresentação de "Feira de Acari" em arraiais... por questões religiosas (eu era da Assembleia de Deus, com o tempo Graças da Deus me desviei) eu nunca briquei em uma quadrilha, como sempre sonhei. Então eu tive nessas duas experiências - boi e afro - momentos mágicos de encontro com batidas de tambores que sempre mexeram comigo... Uma sensação de se achar com os sons do tambor onça, pandeirões, afoxé e do agogô... não como percussionista, mas na dança. Além do arraial do colégio, recordo que ainda tivemos apresentação no povoado Buritirana. Foi minha quase uma turnê! 

Simulação por IA dos jogos Barba do Velho e Pescaria. Montagem: ChatGPT 

Toda essa experiência vivida até meus 15 anos foram suficientes para formar minha paixão pelo que há de mais genuíno na alma nordestina. Mas, somente quando cheguei à São Luís, 1995, pude ter oportunidade de conhecer outras representações culturais maranhenses propriamente ditas como Cacuriá, Coco, Lelê, Tambor de Crioulas e todos os sotaques de bumba-meu-boi... e onde eu descobri que ancestralidade é a raiz que fez brotar a árvore que nos sustentou até que pudéssemos dar frutos.


"Vem, morena, pros meus braços

Vem, morena, vem dançar

Quero ver tu requebrando

Quero ver tu requebrar

Quero ver tu remexendo

Resfulego da sanfona

Inté que o sol raiar

Quero ver tu remexendo

Resfulego da sanfona

inté que o sol raiar"

VEM MORENA 

Luiz Gonzaga


Nestes 30 anos acompanhando os arraiais e boa parte das festividades culturais de São Luís vi muita evolução nos formatos, estruturas, nas quantidades de componentes, estudos, pesquisas acadêmicas, divulgações, aumento de públicos, emprego de tecnologias, shows pirotécnicos e até o uso das redes sociais como forma de chegar e alcançar a novos espectadores. 


Quando paro para olhar tudo que vivenciamos até aqui com todas as inovações que foram incorporadas às brincadeiras folclóricas e aos festejos juninos chego a conclusão que dependendo da forma da introdução e de uso destas alterações até valeu à pena. Embora ainda fique até receoso pelo medo de perderem a mão e acredite que respeitando a moderação necessária até são válidas desde que não se perca a essência e o propósito de suas criações pelos ancestrais de cada segmento cultural e de cada brincadeira. Não se pode deixar de lado a ingenuidade, a doçura do período e nem se pode abrir mão da possibilidade de criação e da realização do trabalho coletivo... sem esses ingredientes jamais as gerações poderão sentir a verdadeira essência junina que faz nossos corações ficarem quentinhos para baterem no compasso das zabumbas e dos pandeirões, que são aquecidos e afinados pelo calor das fogueiras feitas em pagamento de promessas a Santo Antônio, São João, São Pedro e São Marçal.




sábado, 19 de abril de 2025

A RELAÇÃO ENTRE O SÁBADO DE ALELUIA E O DIA DOS POVOS INDÍGENAS

Por: Rivanio Almeida Santos 

Procissão chegando ao Centro Comunitário de Santa Teresa do Paruá, década de 1980.

Hoje é Sábado de Aleluia, dia dos Povos Indígenas e o dia começou comigo vendo uma postagem do querido amigo Ir. Reinaldo. Ele é um irmão da congregação Lassalista, muito importante à formação educacional de boa parte da classe estudantil de Santa Teresa do Paruá a partir dos anos 1980.


Os irmãos, como sempre chamados, até por serem de uma congregação católica foram fundamentais também no fortalecimento da Fé dos alunos, e da comunidade católica da cidade. E, mesmo sendo católicos, sempre respeitaram os alunos que eram de outras religiões. Eu, por exemplo, era da Assembleia de Deus. Esse respeito às pessoas independente de religião, cor, etnia, condições sociais e econômicas foram das coisas mais lindas que plantaram em nossos corações. Eles reforçaram o sentido de comunidade e comunhão que nossos pais tinham nos ensinados com ajuda do Pe. Diniz e o casal de Professores Aécio e Eliane com a construção do Colégio.


Nas lembranças das provas da prática da comunhão e respeito ao próximo, fora as práticas do cotidiano, sempre passa pela Páscoa. Nós éramos estimulados a pensar, discutir os temas e escrever, fazendo frases e redações para expressarmos o nosso entendimento à cerca dos temas de cada momento. Nesse contexto escrevíamos nossas concepções que sempre eram escolhidos para serem datilografado e mimiografados para que diariamente fossem lidos pelos alunos e assim fontes de reflexões em sala de aula antes de começarmos as aulas. Isso nos fez termos opiniões e buscar os argumentos que sustentam nossos pontos de vista, para que não ficássemos alienados. 


Fora essas reflexões que aconteciam o ano todo, inclusive na Páscoa, a gente refletia sobre passagens da bíblia que falam da passagem de Cristo sobre a terra e todos feitos que fizeram dele o Nosso Salvador.  


Àquela época não tínhamos tanta proximidades com o sentindo comercial que transformaram a Páscoa. Para nós era simples e puramente a Semana Santa! Crescemos com este sentido da Palavra Divina na escola e os cuidados domésticos passados por nossos familiares ancestrais. Lá em casa nem tanto, pois Seu Juruca e Dona Terezinha - meus pais - não criam quanto algumas práticas e crendices, achavam ser apenas superstições. Acreditando ou não nos efeitos destas práticas - isso não é o importante agora - sou do tempo que para muitos chefes de famílias não se podia varrer a casa, comer carne vermelha, pentear os cabelos, discutir, brigar, ouvir música, sorrir alto, contar piadas... era um período para se viver o luto pela morte de Cristo. E, apesar de em casa haver o entendimento de se tratar de superstições, eu sempre achei curioso e tinha respeito às crenças de todos. Aprendi que se para alguém era importante tais práticas, então era válido. 


Se estas práticas dividiam opinião entre as pessoas outras duas coisas as uniam... uma era a produção de diversas comidas diferentes naquele período - principalmente bolos de macaxeira, puba, tapioca e milho, alémde canjica e pamonhas - e a outra coisa que todos concordavam era a necessidade de respeitar a história, a vida e a morte do Redentor. Prova disso eram os eventos e celebrações a cada dia que representava uma passagem de Jesus rumo ao seu calvário, crucificação e ressurreição. 

Procissão subindo a ladeira do Alto do Congresso, década de 1990.

Recordo perfeitamente que nesse período tinha sempre procissão que se concentrava na beira da pistada BR-316 e seguia rumo ao centro comunitário e a Igreja de Santa Terezinha. A procissão de Domingo de Ramos e a da Sexta-feira Santa sempre foram as mais linda e emocionantes.


No Colégio tínhamos ainda a realização da cerimônia de Lava-pés. Cada turma realizava a sua. E era tudo em forma de colaboração. Cada aluno ficava responsável por colaborar com o que pudesse... toada de mesa, bacia, toalha, pães, suco de uva, vinho, peixes fritos - quase sempre era empanado com pó de farinha de puba, a melhor forma de fritar peixe -. E sempre após às leituras e reflexões sobre o Evangelho de João (13:1-17) quando Jesus lava os pés de seus discípulos durante a Última Ceia, demonstrando humildade e servidão, éramos instigandos e convidados a seguir seu exemplo lavando os pés de nossos colegas de sala. Essa prática ajudava a mantermos os pés, a alma e o ego - pré e - adolescente no chão, além do respeito ao próximo e as amizades mais fortalecidos.


Como a Semana Santa varia sempre entre os dias 22 de março e 25 de abril, e por hoje ser Sábado de Aleluia e Dia dos Povos Indígenais - nos ultimos 44 anos é apenas a quarta vez que o dia 19 de abril cai entre o Domingo de Ramos e o Domingo de Páscoa - quero registrar aqui como foram esses nossos dias dos Povos Indígenas. 


Naqueles anos o dia era conhecido apenas como o Dia do Índio - não se discutia o significado do termo Índio -. Era o normal do momento por ser o único termo usado de forma generalizada. Não se tratava, por nossa parte, de nenhuma forma de subtração e diminuição da cultura, valores e da importância dos Povos Originários à humanidade e à construção da história e cultura nacional.

Semente Olho de Pavão usada na confecção de réplicas colares indígenas.

Digo e reforço que todo o respeito, admiração e carinho que tenho aos donos das terras brasileiras se formaram a partir das discussões e reflexões em sala de aula que geraram textos e pensamentos ao que fazia referência à vida, música, dança, vocabulário, artesanato, meios de produção, sobrevivência e suas contribuições ao cotidiano dos povos não-indigenas nacionais.


Sabemos hoje que é muito válida a expressão que diz "indígena não é fantasia” como um grande alerta contra o preconceito e a apropriação cultural que acontece quando pessoas não-indígenas se fantasiam de indígenas. Contudo, nos idos dos anos 1980 e 1990, dentro dos conhecimentos que tínhamos, tentar nos paramentar como Indígenas não era uma forma de fantasia e tirar sarro desse povo. Era sim nossa forma de entender seus sentimentos, mesmo que superficialmente. Fazer imitações de seus artesanatos (pulseiras e colares) com sementes vermelhas (conhecido como olho de pavão, tento-vermelho, carolina, olho-de-dragão ou olho-de-pombo), produzir saiotes de sacos de ráfia vermelha ou brancas pintadas de de vermelhoncom urucum, fazer nossos cocares com papelão com penas de rabo galo e galinha naturais, confeccionar arcos e flexas com galhos de árvores do quintal, pintar o corpo com o vermelho extraído das sementes do urucum eram as formas de entender seus trabalhos cotidianos das produções e seus significados para toda essa gente.


O período destinado à conhecer, compreender, discutir e refletir sobre a diversidade cultural e de etnias dos povos e das nações indígenas culminava sempre com cada sala realizando alguma "celebração" com todos vestidos com suas produções e com muita comida do nosso cotidiano resultantes da grande importância e influência cultural indígena à vida nacional. Daí degustávamos macaxeira cozida, peixe frito no azeite de coco babaçu, farinha, beiju, bolo de tapioca, pirão, milho assado, milho cozido, mingau de milho, pamonha na folha de bananeira ou casca do milho, canjica, peixe assado na folha (pra gente na folha de bananeira), bacaba, juçara, suco de buriti, suco de cupuaçu, suco de murici, suco de cajá, suco de jenipapo, suco de caju... consumíamos tudo usando folhas e cascas como utensílios e sem uso de colheres e talheres. Nos servíamos somente com as mãos.


Toda essa vivência foi importante para desenvolver nosso sentimento de respeitar e defender a importância da cultura nativa. Isso foi como a plantação de sementes em terras férteis cultivada no tempo e na lua certa que rendeu grandes e saborosos frutos como Vanalda Araújo, filha de Dona Luzia e do Seu Bebé, ex-aluna do Colégio Santa Teresa - que teve a mesma base de ensino e experiências escolares. 

Vanalda Araújo (de calça azul) com mulheres do povo xixkin no encontro da juventude indígena do povo Aikewara-suruí. 2024

Valnalda hoje reside em Marabá (PA) e se tornou pesquisadora, professora e ativista com atuação destacada na defesa dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia. Ela estuda a relação entre o território e a dinâmica populacional do povo Aikewara-Suruí, que vive na Terra Indígena Sororó no Pará. Sua pesquisa explora como o território, seus recursos e a história do povo influenciam a população e a sua vidas. Hoje esta pesquisa que foi feita para sua dissertação - trabalho final para obtenção do título de mestre em um curso de mestrado - está em uso pela Comissão da Verdade como uma das fundamentações para pedir a reparação coletiva do Povo Aikewara-suruí.


Não há como dizer que nossas comemorações do Dia dos Povos Indígenais tenham tido importâncias distintas das celebrações da Semana Santa, tempo em que fizemos muito análises sobre as ações de Cristo na defesa dos menos favorecidos. A divisão e a multiplicação do peixe, do pão e do vinho não é apenas o literal. Esta divisão e multiplicação é mais sobre fazermos o que estiver ao nosso alcance para que nosso próximo, seja ele de qualquer nacionalidade, etnia, cor, gênero e religião tenham mais vida. E vida - com dignidade - em abundância. 


Impossível não chegar a conclusão que TUDO que vivenciamos, discutimos e aprendemos foi feito com amor, propósito e responsabilidade por professores compromissados em contribuir com dias melhores e fazer alguma diferença, se não no mundo, na vida de quem é "crucificado" um pouquinho a cada dia.




domingo, 19 de janeiro de 2025

UMA CRÔNICA DE OUTROS CARNAVAIS

 

Desfile da Acadêmicos do Grande Rio, Campeã 2022.

Minha irmã Rogenir, residente há alguns anos em Brasília, sempre me indica editais de concursos culturais e me inscrevo em todos que me encaixo nas regras dos editais. Por conta disso finalizei 2024 fazendo uma crônica sobre o início de minha vida no macrocosmos carnavalesco para me inscrever no último concurso que ele me indicou. Mas, o site de inscrições estava com problemas e não consegui anexar meu arquivo. Perdido o prazo, mas fiquei com vontade de contar as experiências vividas e os acontecimentos interessantes e importantes que prenseciei nestes meus 25 anos de Carnaval no Rio de Janeiro e é o que se segue.


Para começar preciso dizer que sempre gostei muito dos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro e tudo aquilo sempre foi uma realidade muito distante da que eu vivia no interior do Maranhão, onde morei até janeiro de 1995, quando mudei para São Luís. O tempo foi passando, segui estudando para o vestibular e dezembro de 1997, quando aos 18 anos conheci Enoque. Ele começou a desfilar na Sapucaí na Escola de Samba Unidos da Ponte no enredo que homenageou a Marrom em 1994. 

Abre-alas da Unidos da Ponte, 1994. Enoque Silva, Destaque Central baixo.


Apesar de eu gostar muito de carnaval nao era meu universo. Eu não conseguia concatenar tudo que envolve esse novo contexto na minha vida. Como dizem hoje em dia, esse munfo é profundo e tem muitas camadas. Precisei do primeiro ano de relacionamento para processar e entender o que é ter um relacionamento de fato e compreender o tamanho do universo cultural que eu estava entrando, principalmente o carnaval carioca. Entrando nesse momento de compreensão em 1999 fui ao Rio de Janeiro pela primeira vez e logo para o desfilar no sambódromo! Eu na Marquês de Sapucaí!!! Vivi muitas experiências superlativas para o universo tão pequeno que era o meu cotidiano até então.


Já na chegada ao barracão vi pessoas que, para o povo que mora no Rio, pode ser comum encontrar pelas ruas, mas eram pessoas que eu só via na TV. Na primeira ida ao barracão já dei de cara com Fernando Vanicci, então apresentador do Esporte Espetacular e quem fazia a narração dos desfiles na transmissão da TV Globo, e David Brasil. Graças ao meu acanhamento mantive a linha e fingi costume legal. 


No dia do desfile subi na alegoria pela primeira vez e já foi uma emoção grande e forte. Ajudei Enoque a se montar e assisti a chegada das composições do carro que contava ali com as presenças entre eles dos atores Raul Gazola, Beto Simas e da atriz Mônica Carvalho, que usou em sua fantasia um costeiro de penas de pavão coloridas que cobriu parte da fantasia de Enoque - juro que se tivesse uma tesoura lá em cima ele teria cortado as penas, vontade e coragem nunca lhe faltaram.


Após deixá-lo pronto no alto do carro alegórico com a fantasia montada no queijo (nome que se dar à plataforma que as pessoas vêm na alegoria) eu desci do carro e enfrentei aquele meio mundo de gente desconhecida. Estava atônito... Lunático! Desacreditando no que estava vendo, vivendo e sentindo... Literalmente ficava me beliscando no braço e na coxa para me certificar que era tudo real. Decidi ir até a alegoria onde estava Biné - acho que a 7ª alegoria, pois naquela época as agremiações desfilavam com cerca de 8, 9, 10 alegorias. Parte delas ficava pra fora dos portões que isolava a concentração dos curiosos - . Entre o carro abre-alas, onde Enoque estava, e o carro de Biné eu fui vendo cenas marcantes para mim. A sensação era de tá dentro de um filme. Não trabalhando na produção, mas dentro da película, sendo um personagem no filme pronto. Era como se estivéssemos rodando em um telão naquele momento e tivessem pessoas assistindo. Como se eu estivesse dentro da grande tela... depois entendi que estava mesmo na tela, entretanto não era do cinema, mas tudo ali era transmitido ao vivo pela Globo. 


Naquele dia vi cenas que não se ver com detalhes durante as transmissões dos desfiles. Cenas como as baianas preparando as estruturas de suas anágoas, presenciei passistas esquentando o corpo, vi outros famosos que só via na televisão como Angélica e Luciano Szafir (eles no alto de uma alegoria setados para não chamar atenção...), Isabel Filardis (tocando chocalho na bateria), Daniele Winits belíssima (Rainha da Bateria), Luciana Gimenez (muuuito discreeeta - contém uma pitada de ironia - fungindo da imprensa, pois estava grávida, vestida de noiva de quadrilha - mostrando a barriga já bem crescidinha - e a impressa do mundo inteiro atrás de confirmar se o pai era mesmo o Mick Jagger).

Zezé Motta, Rainha do Maracatu. Grande Rio, 1999

Biné Gomes, Rei do Maracatu.  Grande Rio, 1999.


Naquele ano fiquei bobo com tantos famosos circulando entre a gente, no meio do povo. Meu transe foi ainda mais profundo quando mais à frente eu me deparo com ela... a figura preta mais linda, o sorriso mais acolhedor e a energia mais contagiante que possa existir no Brasil. Gente... Eu estava diante de Zezé Motta! Ela vestida de Rainha do Maracatu dando entrevista à Globo News. Sai de mim completamente. É como se meu espírito saisse do meu corpo e ficasse rodando e sobrevoando em volta dela ali... fiquei abobalhado vendo a eterna Xica da Silva e Dona Fátima - mãe do Jefferson que namorou Sandrinho na novela A Próxima Vítima, um marco na TV à comunidade gay -. Ela era ainda mais linda e simpática pessoalmente. Quando desligaram as câmeras ela olhou pra mim ali hipnotizado e me cumprimentou com um sorriso, piscou os dois olhos e fez um aceno com a cabeça. Foi quando eu despertei e lembrei que estava viajando escondido e me encontrava ao lado de uma equipe de jornalismo durante uma cobertura ao vivo em uma emissora do maior grupo de comunicação do país. A partir daí fui tendo o cuidado de me esconder das câmeras, como se eles fossem parar tudo só para me denunciar. Coisas que o medo de ser pego na mentira causa.


Eu passei o desfile olhando tudo, não sambei, não cantei... não andei. Foram o samba e as pessoas que me levaram até a dispersão onde despertei e lembrei que precisava subir no carro para ajudar Enoque a desmontar, embalar e descer a fantasia. Na subida ainda ajudei a "bunita" da Mônica Carvalho a descer do seu queijo, até pelo fato de que ela e sua fantasia estavam atrapalhando meu acesso até Enoque, meu orgulho maior naquele carnaval todinho. Terminei aquele desfile morto de cansaço causado por tanta emoção e uma, jamais experimentada, descarga de adrenalina. Eu não tinha preparo físico e emocional para tanto. Ninguém me disse como seria e, se tivesse dito, não teria eu conseguido imaginar como seria. 


Depois daquele outros carnavais já me levaram ao Rio. Aliás, depois daquele ano todos os outros carnavais me levaram à Marquês de Sapucaí. Pelo simples fato de que a cada ano tem-se novas experiências, novas visões, novas percepções, novas vivências. Cada ano é diferente do anterior. Para cada expectador a emoção bate de formas e em lugares diferentes. Nesse tempo que estou inserido nesta cena cultural prensenciei momentos que entraram pra história do carnaval carioca e eu fui uma das testemunhas oculares, acompanhando, se não a produção, mas vivindo o ápice que é o grande dia.


Por exemplo, nos anos 2000, algo que só tinha acontecidoem 1989, todas as escolas do grupo especial tiveram que desenvolver seus enredos em torno das comemorações dos 500 anos do Brasil. Cada agremiação pegou uma vertende e contou em verso, prosa, harmonia, alegoria e fantasia a construção desse país tão diverso. Depois disso vi em o sambódromo, que é um projeto de Oscar Niemeyer, ser reformado e ganhar novos setores com mais acomodações para um público cada vez maior.

Eric Scott, dublê americano. Grande Rio 2001.


Vi um dublê "astronauta" sobrevoar a sapucaí em três desfiles diferentes da Grande Rio - que barulheira aquela "maquina-mochila" fazia -. Presenciei Paulo Barros apresentar o lendário carro DNA pela Unidos da Tijuca, o que é considerado um marco no carnaval moderno. Ainda na Tijuca Paulo impactadou a todos com uma comissão de frente que trocava de roupa em fração de segundos diante dos olhos do público. Assisti ao desfile da Mangueira em que a comissão de frente "incorporava" grandes personalidade da escola, como se vivos estivessem. Por falar em Mangueira, eu vi Jamelão cantar e já estive em eventos com Dona Neuma e Dona Zica. E falando em grandes nomes, Enoque e eu andando pelo Saara, encontramos e tietamos Dona Dodô, a porta-bandeira número 1 da Portela.


Já entrando nos anos 2000, com o advento das possibilidades que os computadores traziam, e com os enredos patrocinados, posso dizer que foi interessante observar escolas começarem a usar tecnologia computadorizada - às vezes até equipamentos da NASA como o equipamento que fazia o astronauta voar nos desfiles - na produção de suas alegorias. Ainda assim, posso afirmar que mais bonito e satisfatório foi ver todas as escolas recorrerem a tecnologia artesanal da floresta amazônica, contratando e importando artesãos do Festival de Parintins em um itercâmbio cultural unindo as culturas brasileiras de ponta a ponta. Isso sim é fenomenal! Há profissionais que ficam seis meses construindo esculturas articuladas nas escolas de samba do Rio de Janeiro e outros seis meses em Parintins dando vida às alegorias dos grupos de Boi-bumbá amazonenses.


Como nem tudo é só alegria, presenciei os dramas das agremiações em períodos de chuva e riscos eminentes a desabamento ou incêndios nos antigos barracões da região do porto. Em compensação em 2006 constatei o impacto nos resultados gerados, tanto na autoestima dos componentes quanto nos trabalhos apresentados nos desfiles, pela mudança para a Cidade do Samba, que recebeu o nome de Joãosinho Trinta. - Aliás, vake registrar que conheci Joãosinho Trinta em 2001. Quando ele chegou à Grande Rio reencontrou Enoque - eles já se conheciam desde 1997 quando Enoque e Biné Gomes vestiram suas fantasias para lhe recepcionar em um evento no Ceprama em São Luís organizado pelo Governo do Estado. Esse evento rendeu a Enoque um convite para fazer parte de um grupo de brasileiro para shows na Europa que incluia a festa de comemoração pelos 700 anos de reinado da Familia Geimaldi de Mônaco -. No dia que conheci Joãosinho, em 2001, ao entrar em sua sala ele estava dando entrevista para ninguém mais, ninguém menos que a icônica jornalista Glória Maria. Caracas... eu tremia e não sabia qual dos dois mais me fazia tremer de emoção. A partir dessa aproximação ficamos amigos de João, inclusive acompanhamos sua saída da Escola - nessa ocasião ele chamou a seu encontro na casa de seus então empresários, depois de Niterói, onde estava em refúgio se esquivando dos contatos da imprensa nos primeiros dias da demissão conflituosa -. Ainda vou escrever posteriormente sobre coisas curiosas que vivemos e ouvimos de João Trinta. Muita coisa séria, algumas coisas graves, entretanto muita coisa divertida.


Em pleno 2004 também fomos surpreendidos com uma censura da igreja católica sobre a parte do desfile da Grande Rio com enredo "Vamos vestir a camisinha meu amor" de Joãosinho Trinta que conscientizava sobre a necessidade do uso da camisinha. Nesse desfile Enoque veio de "Deus Indiano" no carro do kamasutra, a alegoria censurada.

Enoque Silva Destaque da Alegoria Boi Mamão. 
Grande Rio 2011.

Cris Viana, Rainha de Bateria. Grande Rio 2011.


Eu estava lá em 2007 quando o abre-alas da Grande Rio pegou fogo logo na dispersão e precisou ser confeccionado um carro substituto em menos de uma semana para o desfile das campeãs. Foi triste, mas nem imaginávamos que o lano de 2011 foi ainda pior. Foi um ano marcante de forma triste à cultura carnavalesca. A Acadêmicos do Grande Rio estava quase pronta desde dezembro anterior. Faltavam poucas coisas para finalizar e, muita gente do meio falava, que era uma forte candidata ao título. No fato é que no dia 07 de fevereiro estávamos em casa, em São Luís, quando assistimos pelo "Bom Dia Brasil" a chamada ao vivo mostrando os barracões pegando fogo na Cidade do Samba. Estávamos a menos de 30 dias para o desfile oficial e três escolas foram atingidas, União da Ilha, Portela e a Grande Rio sendo a mais afetada. Em tempo recorde as equipes capitaneadas pela resiliência de Kahê Rodrigues com os comandos e articulação da diretoria da Grande Rio deram conta de por a escola na avenida com apoio das co-irmãs. No dia do desfile quando a escola entrou na avenida uma chuva torrencial caiu na Sapucaí que deixou a água da avenida na altura do meio da canela. E, mesmo sem concorrer, foi o melhor desfile da Grande Rio até então. Todo o público presente cantou e aplaudiu muito. A capacidade de se refazer em tão pouco tempo surpreendeu, contagiou e movimentou todos ali presentes. Esse desfile em especial eu passei todo atrás da alegoria do Boi Mamão, onde Enoque estava. Eu estava de olho no esplendor/costeiro da fantasia que curvou para trás com as forças da chuva e dos ventos associadas o peso da água que encharcou as penas da fantasia. Na minha cabeça a ideia era só uma... se o costeiro caísse eu saíria correndo e gritando pra não deixar ninguém se ferir. Ainda bem que nada aconteceu. Acabou nosso desfile, acabou a chuva. Assim, de repente e sem explicação. Foi de chorar de emoção. E 2011 ainda tinha um golpe final ainda mais cruel, em dezembro, fomos golpeados com a morte de Joãosinho Trinta. A cultura nacional ficou de luto com esta perda tão grande e irreparável.


Quando chegamos 2015 o carnaval carioca foi surpreendido por Viviane de Assis, uma mulher, preta, passista e que queria participar do concurso da corte de momo do carnaval carioca.Com 1,23m de altura por conta do nanismo, enfrentou as limitadas regras certame, mas brava como é fez um verdadeiro carnaval, deburrou regras e tabus e conseguiu concorrer ao posto de Rainha do Carnaval 2016.

Viviane de Assis, Passista pequena notável, 2015.


Paralelamente a tudo isso nossa vida em São Luís seguia com muitas histórias sendo experienciadas, tantos trabalhos incríveis feitos para grupos carnavalescos locais e tantos outros trabalhos relevantes apresentados no Rio de Janeiro que em 2016 vivi com Enoque o momento dele ser homenageado em nossa terra pela Escola de Samba Turma da Mangueira, que fica no bairro do João Paulo, onde moramos. Isso nos fez, pela primeira vez, desfilarmos na Sapucaí e na Passarela Do Samba de São Luís no mesmo carnaval. Uma logística louca dada a distância entre as duas cidades e os compromissos assumidos. Uma forma de agradecer à agremiação - em especial ao então Presidente da Escola, Carnavalesco e nosso amigo Itamilson Lima - pela linda homenagem feita com tanto zelo e carinho.


Foi também em 2016 que nosso amigo Milton Cunha, carnavalesco e comentarista da TV Globo, foi homenageado pela escola de samba britânica Paraíso School of Samba durante o Carnaval de Notting Hill e nos convidou para acompanhá-lo e participarmos do desfile que tinha o enredo "Rio Carnival through the eyes of Milton Cunha" - "O Carnaval do Rio pelos olhos de Milton Cunha"-. Um desfile que durou uma 3 horas pelas ruas de Londres.

Enoque Silva, Destaque Central alto.
Grande Rio, 2017.


O ano de 2017 a explosão foi a homenagem da Grande Rio a cantora baiana Ivete Sangalo. Que em ato de retribuição a tudo feito por ela fez questão de desfilar fazendo parte da Comissão de Frente - performando e sendo avaliada como todos os demais componentes - e de vir também no lugar homenageada no último carro. Os bastidores foi uma correria louca, surpreendente e emocionante.


Depois disso, após o carnaval de 2020, o mundo parou por conta da pandemia de Covid-19. Nossos corações deixaram de bater no ritmo da bateria. Nosso ouvidos só ouvia a batida solitária e triste do surdo... e cada vez mais distante. Foi então que recebemos com tristeza a confirmação do já esperado cancelamento dos desfiles em 2021. Não havia o que fazer quanto a isso. Então reagimos e aproveitamos o momento para organizar a "Exposição Virtual Bonecas em Destaque" - no perfil de Instagram (@enoqueosilva) de Enoque - apresentando 52 modelos de miniatura de fantasias de destaques em homenagens a grande nomes do carnaval brasileiro, personalidades do Norte ao Sul do país. Conseguimos aquele ano, com a ajuda de amigos, movimentar a cena carnavalesca brasileira. O trabalho foi matéria em diversos jornais pelo Brasil, inclusive no RJTV. Notoriamente não foi à mesma coisa dos outros carnavais, entretanto foi um carinho nos corações apaixonados pelos desfiles que não tivemos àquele ano.  




Bonecas da Exposição Virtual Bonecas em Destaque, 2021.

Como tudo passa, no ano seguinte, 2022, o país teve a felicidade do retorno dos desfiles, que aconteceu no feriado de Tiradentes. Foi nesse ano que depois de 23 carnavais desfilei em um enredo campeão. A Grande Rio foi a campeã daquele ano. Conquistamos nosso primeiro título no Grupo Especial. Um enredo contra a intolerância religiosa que levou a Sapucaí ao delírio com o enredo “Fala, Majeté! As sete chaves de Exu!”, desmistificando a imagem de um dos orixás mais cultuados nas religiões de matriz africana. Aquele desfile foi diferente. A escola estava diferente. Todos os setores organizados, os diretores não estavam dando ataque de estrelismo como sempre faziam. Todos estavam dispostos e a disposição de colaborar com quem estava precisando de ajuda. Ninguém estava pensando somente em seu umbigo ou no seu momento. Todos estavam voltados para o grande momento da Escola de Caxias. Pela primeira vez eu vi os diretores deixando a Acadêmicos do Grande Rio ser a estrela e brilhar sozinha. E foi muito mais que perfeito. Ganhamos!


Iluminação cênicas da Sapucaí, 2024.


Em 2024 testemunhei também - junto com o público presentes - o inicio do uso de iluminação cênicas na Marquês de Sapucaí durante os desfiles. Não se trata de uma luz específica conforme as necessidades de cada enredo desfilado e sim de uma iluminação específica para cada setor do desfile, que acompanhava o avançar de cada escola pela avenida. O espetáculo cresceu e o público ganhou ainda mais elementos surpresas durante cada apresentação. Foi o início de uma nova era.



Blocos de Carnaval de Rua. 
Anita, Lud e tradicional Bola Preta.


Todos estes anos eu vi surgir no Rio uma folia mais variada e democrática no período momesco. O movimento Escola de Samba, dentro de uma polêmica ou outra, cresceu. E me assustei com o crescimento do carnaval de rua com as bandas e trio arrastando multidões de milhões de pessoas na rua. Crianças, adolescentes, jovens, velhos, solteiros, casados - e até seus pets - saem de casa fantasiados de manhã, vão emendando de bloco em bloco e só retornam à noite.


Percebi ainda a diminuição dos grandes, famosos, glamourosos e caríssimos bailes e concursos de carnaval da cidade do Rio. A falta desses eventos que eram esperados pelo Brasil inteiro fez Milton Cunha criar o Baile Glam Gay fazendo um resgate dos concursos de fantasia de luxo e originalidade, como nos velhos carnavais cariocas, onde personalidades com Clóvis Bornai, Wilsa Carla, Eloy Machado, Isabel Valença, Evandro de Castro - e que eu só conheci pelas páginas da extinta Revista Manchete.

Milton Cunha e seus convidados do Baile Glam Gay, 2020.


Como tudo na vida tem os "do contra" e contrariar estes haters é preciso. Então, vamos lá... desfile de escola de samba não é sempre a mesma coisa. Quem acompanha de fato os desfiles das Escolas de Samba a cada ano se surpreende com as novidades que são descobertas desde as pesquisas de enredo até os dias dos desfiles. Vemos inovação e originalidade apresentadas a cada temas e enredos distintos. Tudo é feito através de processos de criação e execução diferentes. Anualmente somos magnetizados com tecnologias diversas, inovação nas técnicas de confecção, novos estilos de bordados e materiais mais práticos e sustentáveis. Quero acreditar que as agremiações ano após ano estão entendendo a importância das homenagens às figuras e personalidades notáveis que foram marginalizadas ou apagadas pelos brancos contadores da história.


As Escolas de Samba e o carnaval brasileiro tem galhos e folhas de várias cores, mas a sua raiz e o seu tronco são pretos e nas cores do arco-íris. E o que é o ponto forte desta festa toda e deveria ser ainda mais fortalecido encontra uma grande fragilidade. As escolas, e o público, não estão entendendo seu papel social principal que seria enaltecer a participação e valorização o protagonismo daqueles que construíram tudo isso, proporcionando mais igualdade e garantias de direitos tanto raciais quanto dos LGBTQIAPN+. Foi essa gente que criou e construiu tudo isso e é essa gente que segue dando o suor, o sangue e até a vida pela escola. Mas, os lugares principais e de destaques são dados - e até vendidos - a pessoas que tem dinheiro, mídia e visibilidade. Estes, na maioria das vezes, só atrapalham os desfiles, pois não cantam, não dançam, não evoluem e nem são simpáticas.


Apesar dos pontos fracos não há como dizer que o carnaval carioca não seja bom, feliz ou que já deu o que tinha que dar. É inegável a grandiosidade que o carnaval brasileiro alcançou sendo fruto da força, do suor, da energia e da alegria do povo preto e da comunidade LGBTQIAPN+ do Brasil. Se houver uma coisa que posso afirmar sem medo de errar, eu digo viver a experiência de um desfile de escola de samba, em qualquer lugar do país, dá um um orgulho danado de ser preto e de ser brasileiro. Imagine conhecer e viver sendo parte desta história. É justamente aí que percebemos a força de nossos ancestrais e que nos dar a certeza que o povo preto é foda! Não há como não se orgulhar! Já é 2025 e Já já estaremos na Sapucaí novamente. Será o 31⁰ carnaval de Enoque no Rio de Janeiro, 27⁰ ano dele na Grande Rio e o no nosso 26⁰ carnaval juntos. E esse ano a Mina é cocoriô!!!



domingo, 5 de janeiro de 2025

FUI PARA CODÓ E ME ACABEI NA SAPUCAÍ

 Autor: Rivanio Almeida Santos

Carro abre-alas da Acadêmicos do Grande Rio, 1999.

      As pessoas não fazem ideia do que é ser uma criança com espírito ligado em tambores preso a uma religião evangélica. E fazem menos ideia ainda do que é ser uma criança gay, sensível aos toques do tambor e ser induzida a ser de uma igreja evangélica tradicional em uma cidade pequena no interior nordestino onde a vida de cada um "é da conta" de qualquer um.

     Desde muito cedo, mesmo quando era obrigado à frequentar a escola dominical, ao passo que ia me descobrindo diferente dos meus colegas - nos gostos musicais, nos assuntos de conversas, de brincadeiras, na forma de falar e nas paixonites infantis - entre elas percebi que batuques de tambores faziam uma espécie de hipnose em meu cérebro e tinha um certo domínio sobre o meu corpo um tanto afeminado. Os irmãos da igreja ao perceber algum sinal de afeminação de um menor eles já transformam a situação em tentativa de abafamento da sexualidade através da condenação à passar a eternidade no fogo do inferno. Com isso a confusão mental auto condenatória está formada.

Capa do LP Olodum ‎– The Best Of Olodum - usado para as oficinas de Dança Afro.

         Apesar de ter enfrentado tudo isso, olhando para trás, eu tive duas sortes às quais serei grato eternamente. Vou começar pela minha segunda sorte que foi ter os três irmãos mais velhos muito ligados a movimentos sociais e que juntos com seus amigos do colégio cresceram sob o lema da escola comunitária que dizia "estude para ajudar seu povo". Isso lhes deu a consciência de que era preciso fazer algo para ocupar o tempo, desenvolver autoconhecimento empoderamento - antes desta palavra existir - e um nível de conhecimento cultural pensando na responsabilidade que eram ser referência às gerações futuras na nossa cidade. Por conta disso, foi criado um grupo de alunos e ex-alunos - o Grupo Chama - que levava de São Luís ao interior seminários, rodas de conversas paletras de temas importantes - já naquela época - para se chegar aos objetivos aos quais se justificava a criação do grupo. Além disso, eram oferecidas oficinas de serigrafia, teatro, Bumba-meu-boi (batida dos pandeirões, bordados e danças), dança afro e percussão. Eu participei de todas as oficinas, mas, com mais afinco e satisfação dos dois últimos que tinham tambores... não pelo fato de eu gostar de bater ou tocar tambor - as tentativas foram desastrosas - , mas é que eles faziam minha alma dançar e eu soltar meu corpo tão novo e tão travado pelas imposições alheias.

          A outra bem-aventurança foi o pai que tive que, durante minha infância, não tinha religião e nem restrições de amizades com quem quer que fosse por conta de religião. Além disso, ele sempre teve um gosto musical muito apurado para alguém que só estudou até o 3⁰ ano primário (hoje ensino fundamental). Fomos criados ouvindo Luiz Gonzaga, Ângela Maria, Cauby, Nelson Gonçalves, Bezerra da Silva, Beth Carvalho, Agepê, Martinho da Vila... e diversos outros grandes nomes do choro e do samba -. Recordo muito bem do LP das Escolas de Samba do Rio de Janeiro de 1987, que eu ouvia todos os carnavais da primeira a última faixa do lado A e do lado B. Foi com meu pai que eu aprendi a gostar de carnaval de Escolas de Samba. Não que ele me levasse para alguma, pois na cidade não tinha. Recordo que após às 22h, quando baixava as portas de ferro da farmácia, tomava seu banho e ia assistir TV para relaxar a mente e "descansar as pestanas", como ele dizia ao negar que tivesse cochichando. Papai se empolgava com os desfiles, com a genialidade de Joãosinho Trinta, os enredos bem fundamentados, os sambas épicos, voz de Jamelão e o carisma de Negrinho da Beija-Flor. Esse ritual aconteceu até completar meus 15 anos, quando mudei para São Luís e papai ficou na nossa Santa Teresa do Paruá.

Capa do LP Sambas de Enredo das Escolas de Samba Grupo 1A (Especial) do Rio de Janeiro, 1987.

        O tempo foi passando, segui estudando para o vestibular e dezembro de 1997, quando aos 18 anos quis o destino que eu me apaixonasse e começasse um relacionamento com um rapaz chamado Enoque Silva que, mesmo sendo maranhense e residindo em São Luís, era carnavalesco, destaque de carnaval no Rio de Janeiro e eu não o conhecia. Enoque começou na Sapucaí pela Unidos da Ponte no enredo que homenageou a Marrom. Naquele ano ele foi o primeiro destaque a entrar na avenida com uma fantasia gigantesca - a segunda que ele criou para esta função naquele carnaval, pois a primeira o carnavalesco, Washington Luiz, gostou tanto que ficou para transformar em fantasia da comissão de frente e de outro setor do desfile.

         Naquele dezembro de 1997 em que nos conhecemos ele já estava prestes à viajar para mais uma temporada no que é o maior espetáculo da terra e iniciar sua ligação com a Acadêmicos do Grande Rio. Logo já seria 1998 e não naquele ano pude acompanhar naquele que poderia ser o nosso primeiro carnaval juntos. Nos conhecemos a menos de 2 meses da viagem. Restou-me, acompanhar tudo pela televisão como sempre fiz. A transmissão não lhe mostrou como eu gostaria, mas aos olhos de um apaixonado foi tudo lindo. No ano seguinte, já com o relacionamento fortalecido - apesar de escondido da família -, ele planejou tudo para eu o acompanhar na temporada de 1999. Eu iria realizar um sonhonque nem cheguei a ousar a sonhar, tão distante eu achava ser. Mas, como conseguir permissão do meu pai e da minha mãe? Eu ainda não tinha passo no vestibular, nao trabalhava ainda? Como dizer que eu iria ao Rio de Janeiro "brincar" carnaval com meu namorado? Só havia - e ainda existe para muitos de nós - uma única saída nessas ocasiões... Eu precisava pôr em prática a primeira lição do "manual de sobrevivência" da comunidade LGBTQIAPN+, a criação de um enredo fictício, mais conhecida como uma desculpa esfarrapada, uma história fantasiosa, enfim, a mentira. Que fique claro, é. nossa comunidade o ato de mentir surge como um ato de sobrevivência, defesa da integridade física, defesa da vida, resistência e tentativa de viver e ser feliz, mesmo que por momentos curtos. Só pra ilustrar: Estes primeiros dias de 2025 repercutiu a história de um rapaz cearense que passou em primeiro lugar em curso de uma Universidade Federal e foi orgulho pra toda família. Depois disso criou coragem e se assumiu gay aos pais, que não aceitaram o expulsaram de casa pelo simples fato de amar alguém do mesmo sexo... muitas vezes é sobre se proteger.

          Bom, voltando a viagem ao Rio de Janeiro... Quando estava me preparando para esta grande aventura e o dia de viajar estava se aproximando eu disse em casa que iria auxiliar um amigo na produção de uma decoração de Carnaval na cidade de Codó, na região dos cocais maranhense, - a escolha da cidade foi após calcular o tempo de voo -. No dia da viagem, que também contava com a companhia de Biné Gomes, outro maranhense destaque de carnaval que iria debutar na Grande Rio àquele ano, fomos ao aeroporto. Pouco tempo após despacharmos as bagagens dou de cara com Roberto Costa - hoje prefeito de Bacabal -, sobrinho do marido de minha irmã mais velha, Rogener. Ele nos cumprimentou e eu respondi com a cara e o corpo desconfiaaaaados como quem estava fazendo algo errado - será se estava? - Quando adentramos a sala de embarque encontro outro conhecido meu e da mesma irmã. Dei de cara com Lobão. Ele foi meu Professor de Biologia no Colégio Santa Teresa de São Luís, onde minha irmã Rogener era Coordenadora Pedagógica. Eu apavorado, mas tentando manter a calma, fui à cafeteria onde ele se encontrava na fila do caixa. Eu, tremendo e de cara pálida, o cumprimentei e pedi que mantivesse aquele encontro em segredo. E a primeira coisa que ele fez ao voltar para juntos da namorada que o acompanhava na viagem foi contar nossa conversa. Eu li os lábios dela perguntando "e ele vai viajar?". Já era tarde para eu desistir.

Enoque Silva e eu, na minha primeira viagem ao 
Rio de Janeiro, 1997.

      Em poucas horas estava eu desembarcando no Galeão após o Boing 737-300 da TransBrasil ter me levado por Belém, Manaus e Brasília. Só faltou o Tom Jobim tocando piano e cantando uma bossa nova para minha chegada no aeroporto que leva seu nome. Mas, na falta dele eu o imaginei cantando "Corcovado" - "Um cantinho e um violão. Este amor, uma canção. Para fazer feliz a quem se ama..." - Eu estava feliz!!! Apesar de tenso, eu estava muuuuito feliz! Eu estava na Cidade Maravilhosa!

     No dia seguinte antes do almoco já estaríamos entre os barracões na região do porto (não existia a cidade do samba ainda) na companhia de Max Lopes e Danyllo Gayer, então Carnavalesco e Diretor de Destaques da Grande Rio, respectivamente. Eu estava sentido pela primeira vez - e sinto nesse instante que escrevo este texto - o cheio de barracão que é uma mistura fumaça de solda e cola de sapateiro que me remete a grande produção cultural, isso me gera uma satisfação gigantesca. 

       Todos os dias eu ligava para casa do telefone público do Hotel Vitória, no Catete, onde estávamos hospedados. Também todos os dias eu contava uma mentira ou apenas dizia que estava bem para não me pegarem na mentira e dizia que a fila do orelhão estava grande para desligar rápido.

Alegoria Maracatu, a parte da frente a gigante saia de Zezé Motta como Rainha do Maracatu. Grande Rio, 1999.

Biné Gomes, como Rei do Maracatu  Destaque da Alegoria Maracatu. Grande Rio, 1999.

          No dia do desfile a ansiedade me consumia. Minha boca secava... eu não conseguia beber nada... eu tinha vontade de fazer xixi... eu não tinha o que urinar. Sabe aquela borboleta no estômago? Eu tinha um borboletário inteiro. Somente quando cheguei à concentração fui realizando a dimensão real que era todo aquele universo. O que vemos na TV é ínfimo, nunca é compatível com o que vimos e, principalmente, com o sentimos lá, ao vivo. Indescritível o que acontece com nosso coração quando a bateria começa a esquentar. Só estando lá!!! Eu tive lá e nunca mais deixei de estar. Eu olhava em volta e o que via eram as alegorias cercadas por milhares de pessoas sorrindo. Naquele mundaréu de gente feliz eu só conhecia Enoque e Biné e parecia ser amigo de todo mundo. Como, além de namorado, minha função no desfile era de Apoio de Destaque, ajudei Enoque a subir na alegoria que representava um sertão nordestino com terra seca e uma grande caveira bovina no centro. Ajudei ele a se montar e assisti a chegada das composições do carro que contava ali com as presenças, entre eles, de alguns famosos como dos atores Raul Gazolla, Beto Simas e da atriz Mônica Carvalho. Fantasia montada, Enoque pronto no alto do carro alegórico eu desci do carro e enfrentei aquele meio mundo de gente desconhecida. Atônito. Lunático. Desacreditado ainda no que estava vendo, vivendo e sentindo. Literalmente ficava me beliscando no braço e na coxa para me certificar que era real. Decidi ir até a alegoria onde estava Biné - acho que a 7ª alegoria, pois naquela época as agremiações desfilavam com cerca de 8, 9, 10 alegorias. Meu transe foi profundo quando mais à frente eu me deparo com ela... a figura preta mais linda, o sorriso mais sincero e a energia mais contagiante que possa existir no Brasil. Gente... Eu estava diante de Zezé Motta! Ela vestida de Rainha do Maracatu dando entrevista à Globo News. Sai de mim completamente. Foi como se meu espírito saísse do meu corpo e ficasse sobrevoando em volta dela ali... fiquei abobalhado vendo a eterna Xica da Silva e Dona Fátima - mãe do Jefferson que namorou Sandrinho na novela A Próxima Vítima, um marco na TV à comunidade gay -. Ela era ainda mais inteligente, linda, elegante e simpática pessoalmente. Quando desligaram as câmeras ela olhou para mim ali hipnotizado e me cumprimentou com um sorriso, piscou os dois olhos adornados com gigantescos cílios postiços e fez um aceno com a cabeça. Foi quando eu despertei e lembrei que estava viajando escondido e me encontrava ao lado de uma equipe de jornalismo durante uma cobertura ao vivo em uma emissora do maior grupo de comunicação do país. A partir daí fui tendo o cuidado de me esconder das câmeras, como se eles fossem me denunciar. Coisas que o medo de ser pego na mentira causa.

Enoque Silva (vide seta), no topo do carro abre-alas. Acadêmicos do Grande Rio, 1999.

         Naquela viagem, em especial naquele desfile, senti vibrações nunca vivenciadas ou sentidas antes. Após toda essa experiência, cheguei à conclusão que o povo brasileiro criou o samba e o seu Carnaval diferenciado do resto do mundo para esquecer, mesmo que por algum dias, todo e qualquer problema, ainda que por vezes o enredo seja denunciando um ou outro - ou todo e qualquer - problema que nos maltrata ainda nos dias de hoje.

Desfile da Acadêmicos do Grande Rio, 1999.

      Passados quase 15 dias vivendo o Rio de Janeiro retornei para casa cheio de novidades e assuntos, no entanto não podia falar ou comentar nada. Sempre que ouvia a palavra "Codó" eu escapulia do ambiente. Assim foi até o primeiro fim de semana após minha chegada, quando minha irmã Rogener com o marido - o tio do Roberto que me flagrou no aeroporto - foi nos fazer uma visita na casa onde eu morava com os demais irmãos solteiros. Durante o tradicional cafezinho oferecido a meu cunhado ele lança a flecha:

    - E então Rivanio, como é Codó?...

Senti como se ele já soubesse de tudo, o que nunca confirmei. O meu sistema respiratório deu uma pausa de segundos. Quando voltei joguei a respostas sem nem pensar:

       - Ora, Costa... como toda cidade do interior do Estado. Uma rua que entra, uma rua que sai e uma igreja entre as duas ruas. Respondi tentando controlar o tremor da voz e a suadeira das mãos enquanto me levantava e saía da sala antes que vissem na minha cara que eu não sabia nem que estrada leva de São Luís à capital da macumba e terra de Bita do Barão. 

        Só sei que retornei vidrado nas inovações de cada enredos. Tudo feito através de processos de criação diferentes. Minha percepção naquela época era que escolas - ano após ano - seguiam entendendo seu papel social e acolhendo ainda mais a participação das minorias e valorizando o protagonismo em busca de igualdade racial, os direitos LGBTQIAPN+, além das homenagens às figuras e personalidades importantes que foram marginalizadas ou esquecidas pela história. Hoje sinto que este lugar é somente para construção da base e dos alicerces das plataformas que servem para dar ainda mais destaque a brancos, héteros e/ ou famosos que lhe traram mais visibilidade midiática.

         Após esses momentos iniciais de vivências, experiências e cumplicidades meu relacionamento com Enoque encontrou mais afinidades, ficamos ainda mais cúmplices, criamos mais confiança e eu me senti mais forte para aos poucos me reconhecer, reafirmar minha minhas preferências, me assumir e impor o respeito necessário. A partir do carnaval do ano 2000 não precisei mais mentir. Não precisei mais me esconder ou tentar disfarçar ser o que nunca fui. 

Trecho desfile Acadêmicos do Grande Rio, 2024.

  Em dezembro de 2024 completamos 27 anos de relacionamento, temos uma filha de 28 anos formada, moramos com sua mãe. Vivemos todos com amor e respeito. E no carnaval de 2025 estaremos na Sapucaí no nosso 26⁰ carnaval juntos. Desta vez estaremos em comemoração ao 31º carnaval de Enoque no Rio de Janeiro. E seguiremos, pois o carnaval é uma das paixões que seguem alimentando nossa união.


Imagens com alguns amigos conquistados nos meus 26 carnavais cariocas: