Procissão chegando ao Centro Comunitário de Santa Teresa do Paruá, década de 1980.
Hoje é Sábado de Aleluia, dia dos Povos Indígenas e o dia começou comigo vendo uma postagem do querido amigo Ir. Reinaldo. Ele é um irmão da congregação Lassalista, muito importante à formação educacional de boa parte da classe estudantil de Santa Teresa do Paruá a partir dos anos 1980.
Os irmãos, como sempre chamados, até por serem de uma congregação católica foram fundamentais também no fortalecimento da Fé dos alunos, e da comunidade católica da cidade. E, mesmo sendo católicos, sempre respeitaram os alunos que eram de outras religiões. Eu, por exemplo, era da Assembleia de Deus. Esse respeito às pessoas independente de religião, cor, etnia, condições sociais e econômicas foram das coisas mais lindas que plantaram em nossos corações. Eles reforçaram o sentido de comunidade e comunhão que nossos pais tinham nos ensinados com ajuda do Pe. Diniz e o casal de Professores Aécio e Eliane com a construção do Colégio.
Nas lembranças das provas da prática da comunhão e respeito ao próximo, fora as práticas do cotidiano, sempre passa pela Páscoa. Nós éramos estimulados a pensar, discutir os temas e escrever, fazendo frases e redações para expressarmos o nosso entendimento à cerca dos temas de cada momento. Nesse contexto escrevíamos nossas concepções que sempre eram escolhidos para serem datilografado e mimiografados para que diariamente fossem lidos pelos alunos e assim fontes de reflexões em sala de aula antes de começarmos as aulas. Isso nos fez termos opiniões e buscar os argumentos que sustentam nossos pontos de vista, para que não ficássemos alienados.
Fora essas reflexões que aconteciam o ano todo, inclusive na Páscoa, a gente refletia sobre passagens da bíblia que falam da passagem de Cristo sobre a terra e todos feitos que fizeram dele o Nosso Salvador.
Àquela época não tínhamos tanta proximidades com o sentindo comercial que transformaram a Páscoa. Para nós era simples e puramente a Semana Santa! Crescemos com este sentido da Palavra Divina na escola e os cuidados domésticos passados por nossos familiares ancestrais. Lá em casa nem tanto, pois Seu Juruca e Dona Terezinha - meus pais - não criam quanto algumas práticas e crendices, achavam ser apenas superstições. Acreditando ou não nos efeitos destas práticas - isso não é o importante agora - sou do tempo que para muitos chefes de famílias não se podia varrer a casa, comer carne vermelha, pentear os cabelos, discutir, brigar, ouvir música, sorrir alto, contar piadas... era um período para se viver o luto pela morte de Cristo. E, apesar de em casa haver o entendimento de se tratar de superstições, eu sempre achei curioso e tinha respeito às crenças de todos. Aprendi que se para alguém era importante tais práticas, então era válido.
Se estas práticas dividiam opinião entre as pessoas outras duas coisas as uniam... uma era a produção de diversas comidas diferentes naquele período - principalmente bolos de macaxeira, puba, tapioca e milho, alémde canjica e pamonhas - e a outra coisa que todos concordavam era a necessidade de respeitar a história, a vida e a morte do Redentor. Prova disso eram os eventos e celebrações a cada dia que representava uma passagem de Jesus rumo ao seu calvário, crucificação e ressurreição.
Procissão subindo a ladeira do Alto do Congresso, década de 1990.
Recordo perfeitamente que nesse período tinha sempre procissão que se concentrava na beira da pistada BR-316 e seguia rumo ao centro comunitário e a Igreja de Santa Terezinha. A procissão de Domingo de Ramos e a da Sexta-feira Santa sempre foram as mais linda e emocionantes.
No Colégio tínhamos ainda a realização da cerimônia de Lava-pés. Cada turma realizava a sua. E era tudo em forma de colaboração. Cada aluno ficava responsável por colaborar com o que pudesse... toada de mesa, bacia, toalha, pães, suco de uva, vinho, peixes fritos - quase sempre era empanado com pó de farinha de puba, a melhor forma de fritar peixe -. E sempre após às leituras e reflexões sobre o Evangelho de João (13:1-17) quando Jesus lava os pés de seus discípulos durante a Última Ceia, demonstrando humildade e servidão, éramos instigandos e convidados a seguir seu exemplo lavando os pés de nossos colegas de sala. Essa prática ajudava a mantermos os pés, a alma e o ego - pré e - adolescente no chão, além do respeito ao próximo e as amizades mais fortalecidos.
Como a Semana Santa varia sempre entre os dias 22 de março e 25 de abril, e por hoje ser Sábado de Aleluia e Dia dos Povos Indígenais - nos ultimos 44 anos é apenas a quarta vez que o dia 19 de abril cai entre o Domingo de Ramos e o Domingo de Páscoa - quero registrar aqui como foram esses nossos dias dos Povos Indígenas.
Naqueles anos o dia era conhecido apenas como o Dia do Índio - não se discutia o significado do termo Índio -. Era o normal do momento por ser o único termo usado de forma generalizada. Não se tratava, por nossa parte, de nenhuma forma de subtração e diminuição da cultura, valores e da importância dos Povos Originários à humanidade e à construção da história e cultura nacional.
Semente Olho de Pavão usada na confecção de réplicas colares indígenas.
Digo e reforço que todo o respeito, admiração e carinho que tenho aos donos das terras brasileiras se formaram a partir das discussões e reflexões em sala de aula que geraram textos e pensamentos ao que fazia referência à vida, música, dança, vocabulário, artesanato, meios de produção, sobrevivência e suas contribuições ao cotidiano dos povos não-indigenas nacionais.
Sabemos hoje que é muito válida a expressão que diz "indígena não é fantasia” como um grande alerta contra o preconceito e a apropriação cultural que acontece quando pessoas não-indígenas se fantasiam de indígenas. Contudo, nos idos dos anos 1980 e 1990, dentro dos conhecimentos que tínhamos, tentar nos paramentar como Indígenas não era uma forma de fantasia e tirar sarro desse povo. Era sim nossa forma de entender seus sentimentos, mesmo que superficialmente. Fazer imitações de seus artesanatos (pulseiras e colares) com sementes vermelhas (conhecido como olho de pavão, tento-vermelho, carolina, olho-de-dragão ou olho-de-pombo), produzir saiotes de sacos de ráfia vermelha ou brancas pintadas de de vermelhoncom urucum, fazer nossos cocares com papelão com penas de rabo galo e galinha naturais, confeccionar arcos e flexas com galhos de árvores do quintal, pintar o corpo com o vermelho extraído das sementes do urucum eram as formas de entender seus trabalhos cotidianos das produções e seus significados para toda essa gente.
O período destinado à conhecer, compreender, discutir e refletir sobre a diversidade cultural e de etnias dos povos e das nações indígenas culminava sempre com cada sala realizando alguma "celebração" com todos vestidos com suas produções e com muita comida do nosso cotidiano resultantes da grande importância e influência cultural indígena à vida nacional. Daí degustávamos macaxeira cozida, peixe frito no azeite de coco babaçu, farinha, beiju, bolo de tapioca, pirão, milho assado, milho cozido, mingau de milho, pamonha na folha de bananeira ou casca do milho, canjica, peixe assado na folha (pra gente na folha de bananeira), bacaba, juçara, suco de buriti, suco de cupuaçu, suco de murici, suco de cajá, suco de jenipapo, suco de caju... consumíamos tudo usando folhas e cascas como utensílios e sem uso de colheres e talheres. Nos servíamos somente com as mãos.
Toda essa vivência foi importante para desenvolver nosso sentimento de respeitar e defender a importância da cultura nativa. Isso foi como a plantação de sementes em terras férteis cultivada no tempo e na lua certa que rendeu grandes e saborosos frutos como Vanalda Araújo, filha de Dona Luzia e do Seu Bebé, ex-aluna do Colégio Santa Teresa - que teve a mesma base de ensino e experiências escolares.
Valnalda hoje reside em Marabá (PA) e se tornou pesquisadora, professora e ativista com atuação destacada na defesa dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia. Ela estuda a relação entre o território e a dinâmica populacional do povo Aikewara-Suruí, que vive na Terra Indígena Sororó no Pará. Sua pesquisa explora como o território, seus recursos e a história do povo influenciam a população e a sua vidas. Hoje esta pesquisa que foi feita para sua dissertação - trabalho final para obtenção do título de mestre em um curso de mestrado - está em uso pela Comissão da Verdade como uma das fundamentações para pedir a reparação coletiva do Povo Aikewara-suruí.
Não há como dizer que nossas comemorações do Dia dos Povos Indígenais tenham tido importâncias distintas das celebrações da Semana Santa, tempo em que fizemos muito análises sobre as ações de Cristo na defesa dos menos favorecidos. A divisão e a multiplicação do peixe, do pão e do vinho não é apenas o literal. Esta divisão e multiplicação é mais sobre fazermos o que estiver ao nosso alcance para que nosso próximo, seja ele de qualquer nacionalidade, etnia, cor, gênero e religião tenham mais vida. E vida - com dignidade - em abundância.
Impossível não chegar a conclusão que TUDO que vivenciamos, discutimos e aprendemos foi feito com amor, propósito e responsabilidade por professores compromissados em contribuir com dias melhores e fazer alguma diferença, se não no mundo, na vida de quem é "crucificado" um pouquinho a cada dia.