domingo, 10 de novembro de 2024

A QUITANDA DO VÉI BRAGA

 

Quintanda ou mercearia de antigamente.
Fonte: Internet 

Na vida há quem reclame da falta de opções de escolhas em determinadas circunstâncias, mesmo que ja tenha o básico. Contudo, para quem é indeciso ter muitas opções de compra pode ser... aliás, é um grande problema - para quem é diagnosticado com TDAH piora -. Ter as tecnologias e suas possibilidades pode ter suas vantagens, mas o que dizer quando se tem pelo menos a chance de se ter o básico? 


Hoje eu "consigo" ir ao Mateus Supermercados fazer compras e sair dizendo que não encontrei nada. Quando na verdade não consegui decidir por nada ofertado nas gôndolas. Isso acontecia também quando eu ia ao Hiper Bom Preço ou quando precisava fazer Lusitana. Indeciso - e com TDHA, que desconhecia ter - eu precisava então já sai de casa com a nota na mão com nomes e marcas dos produtos para não perder tempo sofrendo em processos de escolhas. Em caso de faltas o Plano B para facilitar sempre foi optar pelo menor preço - Terezinha de Juruca, minha mãe, me ensinou optar pelo menor preço pra render o dinheiro e aumentar as compras.


Contudo, entrar em um grande supermercado eu só tive oportunidade aos 15 anos, quando me mudei para São Luís. Antes o maior comércio que eu conhecia era o Supermercado Holanda, do Seu Amâncio (adivinha onde...?) lá em Santa Teresa do Paruá. Embora à epoca fosse grande, dadas as proporções da cidade, não chegava a ter o tamanho de uma das lojas Mateus Supermercados de hoje. Era de lá que saiam as compras feitas para mandar aqui pra São Luís. Vinha na caixa desde o fósforo até os condimentos necessários em uma cozinha. Tudo comprado fiado e devidamente pago. Tudo era comprado e anotado em caderno de espiral para pagamento posterior. Não tínhamos, e nem no comércio local recebia, cartões de crédito. Isso foi lá pelos meados dos anos 1990.


Apesar de haver este local com mais opções de escolhas em tempos próximos dos "tecnológicos e futuristas" anos 2000, ressalto que somente uma década antes era bem diferente. Viver na Santa Teresa dos anos 1980, era como viver quase em um Brasil Colônia, principalmente quando recordo que hoje em dia podemos fazer compras pelos aplicativos, ir buscar a compra feita ou, caso queira, esperar a entregar ser feita no endereço indicado.

Querosene Jacaré. Fonte: Internet 

Naquela época os termos mais usados eram comércio, mercearia, bodega ou quintanda. Muitas de nossas coisas do dia a dia eram compradas nas quitandas vizinhas. E haviam várias por perto da nossa casa - até pelo fato de morar na Rua do Comércio, 177 -. A quitanda/restaurante/bar do Quinô (onde vendiam passagens de ônibus), do Nhozinho, do Nonato da Usina, do Zé Sinhô, do Domingos Noca, do Mariano Branco, do Raimundo Cosmo, do Jomar, do Seu Conceição, do Cornélio e do Chagas Fernandes (lá que vendia os cadernos da Xuxa que eu morria de vontade de comprar, mas "eram coisas de meninas") e a quitanda do Seu Braga são alguns exemplos que recordo rapidamente ao fechar os olhos e me teletransportar àquele tempo.


De todos os que recordo o do Seu Braga sempre instigou pois tinha um quê de originalidade. Muita coisa em pouco espaço... Apesar de não ter certeza, tenho impressão que a frente da casa era de madeira e à epoca era comum as casas terem um nome, tipo "Casa São Pedro", "Casa 3 Irmãos", enfim... lembro que a Casa do Seu Braga, onde f a quitanda tinha um nome, mas não lembro qual. A cena era quase sempre a mesma, quase um quadro: Seu Braga, um senhor de cabelos brancos, vestido de Calças - sem camisa ou de camisa completamente aberta - sentado em um tamborete de pernas abertas, coluna ereta, conversando com os vizinhos na frente do comércio. Quando chegava os fregueses dos interiores distantes eles desciam e arravam seus animais - cavalos, burros ou jumentos - no mourão à frente da casa - os fregueses da cidade mesmo normalmente iam de bicicleta e punham-nas encostadas na calçada, presas por um dos pedais. Seu Braga levantava, entravam no comércio, passava pelos sacos de farinha de puba, farinha seca, arroz, açúcar, tapioca fina, tapioca grossa, feijão e milho para passar pela cancela (fechada por tramela) disponível do lado direito do balcão de madeira. Por trás do balcão ele perguntava o que o comprador queria. E, apesar de ser um espaço pequeno, se não tínhamos muita variedade do mesmo produto para poder escolher, nós tínhamos o que precisávamos de básico.

Refrigerante Jeneve, anos 1980. 
Fonte: Internet 

Algum de Figurinhas. Anos 1980. Fonte: Internet

Alpargatas Havaianas, anos 1980. Fonte: Internet

Na quitanda do Seu Braga, além dos sacos de grãos que ficavam à frente do balcão, tinha um móvel de madeira, com divisões, para armazenar grãos que eram tirados com ajuda de uma concha de zinco para ser pesados em sacos plásticos na balança de dois pratos, que fica sobre o balcão. Ali naquele espaço ainda podia-se encontrar disponível à venda: sandálias havaianas na cor azul e branco (quando ainda vinham nos sacos transparentes); açúcar (que vendia a retalhos); margarina primor (quando vinham em latas metálicas grandes); fumo coringa (às vezes davam pedaços de plásticos de brinde e que muitos usavam como toalhas de mesas em casa); bolacha fogosa; sabão pintado em barra (que vendia em pedaços medidos na peixeira); pirulito chamado cabeção; ploc; óleos de coco (da lata de metal que não recordo o nome, mas tinha uma coroa como logomarca nas cores branca, azul e dourada); copos de massa de tomate cica (a do elefante); esteira de junco para lombo dos equinos; pipocas "de isopor" (vinha com dinheirinho de brinquedo ou balão); álbuns de figurinhas (que "dava" brinde à quem achava a figurinha chave - que vinha um desenho de uma chave); canetas bic, bombom de menta pipper, bombom de morango, papel higiênico (na cor rosa, reciclado... a gente via letras de jornais e revistas); lamparinas, conhaque São João da Barra; 51; refrigerantes (guaraná antártica, Coca-Cola, fanta laranja e jeneve); tranças de alho; bolacha água e sal e bolacha recheada de morango da marca Hiléia; vitamilho; café bacabal e pão massa fina com abacatada ou suco de maracujá. Na frente das prateleiras ficavam penduradas cartelas de lâminas de Gillette; pilhas raiovac; caixas de comprimidos anador, engov e sonrisal. Por trás das folhas das portas que entrada e saída ficavam as vassouras de cipó titica e vassouras de palha de carnaúba, as latas de querosene jacaré para as lamparinas (não tínhamos energia elétrica e comprávamos de quarta de litro, meio ou litro em garrafas vazias) e os rolos de cordas de sinal e cordas de nylon azul. 

Massa de Tomate Cica. Fonte: Internet

Vassouras de Cipó. Fonte: Internet

Concha de zinco pra pegar grãos. Fonte: Internet

Lamparina. Fonte: Internet

Quem ler esta lista toda misturada de produtos vendidos na quitada do Véi Braga pode achar que eu não me preocupei em organizar. Mas, a intenção era que quem estiver lendo sinta, ou visualize mentalmente, como os produtos eram expostos nas prateleiras, pendurados, no chão ou sobre o balcão. Aliás, sobre o balcão ficavam a balança de dois pratos; a mini vitrine (onde ficavam os pães massa fina); Era ali, sobre aquele balcão que ficavam o papel de embrulho (grosso, meio acinzentado e reciclado) e para segurar o papel um peso usado na balança grande de chão de pesar as sacas de grãos e uma pedra que diziam ser um "corisco", hoje sei que se trata de um material arqueológico importante.


Todos iam e saiam da casa de Seu Braga com o que iam comprar e satisfeitos, se não pelo atendimento dele com suas brincadeiras e piadas, com certeza pelo atendimento mais contido, mas cordial, de Dona Mundica, sua esposa. 


Nestes 30 ou 40 anos muita coisa mudou no mundo e em Santa Teresa do Paruá, que foi emancipada e hoje se chama Presidente Médici. As casas não tem mais os mourões a frente, a maioria das pessoas andam de carros ou motos, a energia elétrica chegou. Nas casas chegaram os telefones residenciais e hoje quase todos têm smartphones. As distâncias ficaram menores de Santa Teresa e qualquer lugar do mundo e se antes as novidades chegavam pelos ondas sonoras dos rádios, revistas e TVs, hoje se pode acompanhar todo e qualquer acontecimento do planeta em tempo real. Saímos de um lugar analógico para um mundo digital, altamente tecnológico e jamais outra geração viverá estas mesmas experiências de mudanças e evoluções às quais a nossa geração foi testemunha, coadjuvante e, em alguns casos, até protagonista. Mas, se tem uma coisa nunca mudou foram as relações humanas, pessoais e as necessidade das pessoas em ter um ao outro. Não mudou a certeza de que nem sempre ter grande variedade do mesmo produto é o mais importante. Não mudou em muitas pessoaa, inclusive em mim, a certeza que ter a possibilidade do que é essencial já faz uma grande diferença. Isso associado a conhecer de quem se compra (ou para quem para quem se vende) é indispensável em qualquer época, em qualquer ramo de negócio e com qualquer tecnologia para uma relação - mesmo que comercial - sem arrependimento.